RESPIGOS 3
ANOS DA MOCIDADE DO DOUTOR FREIRE (CONTINUAÇÃO)
(Mais um respigo da Humanitas e do texto do Dias da Costa sobre o nosso professor. Estas cenas do quotidiano do seminário são momentos brilhantes que nos fazem olhar para trás com tanto gozo, porque revelam uma atitude de «alegre e álacre, gargalhantemente saudável — de jovialidade, ante a vida», como diz o Dias da Costa)
5. O Latim
A fábrica de latinistas que ali ia! E, logo de começo, desde o primeiro dia. O professor dos primeiros rudimentos foi o P.e Ramiro, que Deus haja.
Reuníamo-nos todos na grande sala de estudo, em frente da mesa do professor, colocada sobre um estrado.
Declinações e disciplina. Hora, horae... Qui, quae, quod... Mas as declinações frequentemente se avariavam... Ε a disciplina, às tantas, também entrava em apuros. Ε era, então, ocasião de o bom do P.e Ramiro se ver obrigado a fazer repressão, por muito que lhe doesse — e lá castigava o prevaricador, mandando-o pôr de joelhos.
Nos anos posteriores, o P.e Augusto -com os avançados poetas Vergílio e Horácio. E, em todos os primeiros 8 anos, foi um latim que superabundou, naquela casa —desd&os quotidianos actos litúrgicos miudinhamente repetidos — até às aulas de Filosofia. Aulas e livro em latim. Em latim era a perlenga do mestre, o P.e Marujo que inexorável, metódica e taxativamente — martelava o seu intróito: "Vidimus jam..."
6. A aula de Inglês
O Monsenhor Reitor. O respeito vivo que ele inspirava! Ensinava Inglês e Trigonometria. Inglês pelo livro do P.e Albino. Tinha sido missionário em Africa, tinha visto ingleses na sua vida. Nas aulas, lia-se e traduzia-se. Falar, isso nunca. Era assim como se de língua morta se tratasse. Dicionários e escrita.
Ε eis que, numa dessas aulas, no meio de todo o solene, perscrutante silêncio que restava para além das palavras da aula, — num momento imprevisível, se ouviu, com som de assobio, uma cantilena, em volume piano, mas ainda assim francamente irreverente.
De que se tratava? De que lugar tão vizinho, e ao mesmo tempo tão alheado, se tinha soltado e se mantinha no ar — tal ave canora? Estancou o Monsenhor a ministração do ensino da sua foreign language. Ε criou-se, ali, um momento de perplexidades, que paralisou todas as respirações.
Ε foi então, à mão-tente, a jeito de tiro de instinto com arma de cano serrado, que o Monsenhor interveio, inexorável, dizendo:
— Quer vender-me o seu assobio?
Olhamos: era o Freire, o visado. Na segunda carteira do lado esquerdo do professor, ali se via ele — pequeno e reduzido.
Claro que nunca nenhuma resposta foi dada àquela pergunta negocial do professor. Mas, também, pela negação da resposta a ser dada pelo interpelado, ficámos a entender que o aluno nunca, em tempo algum, quereria vender tal assobio, e por preço nenhum do mundo.
Ε mais se infere desta história — que para o dono de tal assobio se tinha tornado evidente que havia mais coisas no mundo do que aprender Inglês e que se estaria até mesmo um pouco nas tintas — para quem o ensinava ou aprendia.
Ε deixava-se também perceber que, no usufruto do seu divagar, aquele assobio chegaria mesmo a querer dizer: "A vida é bela, para quê estragá-la!".
Ε ainda: aquele clandestino assobiador da aula de Inglês, com aquele seu brunido silêncio de não-resposta, tinha ali acabado de dar um exemplo eficaz do mais rotundo e cabal fair play que possa alguma vez ser dado — e, afinal, à inglesa.
7. O salto da parede
Naquele tempo, tinha eu a preocupação de, a olho, a todo o momento, medir distâncias, tendo em vista o superá-las, com o salto que fizesse. Olhava os espaços, como matéria transponível, num golpe de músculo. Assim, de um momento para o outro, me encontrava eu em operações de desafio de atléticos cometimentos.
Conhecedor de tal facto, numa altura em que eu chegava ao recreio da segunda divisão — a dos mais velhos, o Freire, de combinação com outros companheiros, saltou, a pés juntos, a altura de um muro. Ele tinha saltado de cima de um banco, que sub-repticiamente retiraram e esconderam dos meus olhos e que, dado o meu posicionamento, julgaram eu não ter visto.
Foi então a vez de o Freire querer fazer render o seu peixe. E, dirigindo--se a mim, exclamou, em ar de grande desafio:
— Salta tu agora, vê se és capaz.
Percebi a razão da algazarra que ali se estava levantando, entre todos os mancomunados. Mas, vendo que a altura a saltar estava dentro dos limites do meu alcance, saltei-a mesmo, fazendo de conta de que de nada me tinha apercebido. Ε a algazarra terminou de vez. Tinham ido por lã e tinham ficado tosquiados...
Mas o Freire ainda hoje acredita que eu não vi o banco.
Conclusão. Esta história a intitular-se de "Embuste frustrado", ou de "suposta partida de amigos" — que diz ela dos seus intervenientes senão — aproveitamento da psicologia alheia, em função de possível desfrute, aliado ao gosto de brincadeira e de riso? Ε como classificar a atitude dos seus ânimos? De alegre e álacre, gargalhantemente saudável — de jovialidade, ante a vida.
8. O canto da fonte
O que se passa a relatar aconteceu perto da fonte a que ninguém ia beber. Uma fonte encimada de ornamentos de granito, em que os canteiros de Alcains tinham posto a marca do seu labor.
Por ali passava a estrada que leva à Lardosa, a Castelo Novo, a Alpedrinha, ao Fundão, etc.
Não longe, uma pequena lagoa, constituída por uma pedreira, em que as chuvas tinham depositado alguma água, uma pequena cobra deslizante mostrava os macios coleios da sua classe de natação.
Por aquelas horas de tarde mornenta, estavam-se, ali e então, a ouvir as notas dolentes de uma melodia, que, ao elevar-se no ar, — hábil, docemente, lá se iam entretendo a embalar, revestir, imbuir, edulcorar — uns versos de "Os Simples" de Guerra Junqueiro:
Toque, toque, toque,
moleirinha errante...
Deitados, sentados entre fetos e pedras, o mundo parado — os seminaristas, no término do seu passeio, ocupavam-se, ali, em a ir escutando — atentos, deliciados...
Ε a voz que ali soava, mantendo-se no ar, por entre os silêncios dos espaços circundantes—por lá continuou a andar a entornar—romançosa, rítmica — seus delíquios sonoros, — até que, de todo, se esgotou o poema...
Quem assim cantava, entre os seus companheiros? O Freire. Ele próprio havia feito a música para tais versos e — de presente — ali a oferecia, em encantamento dos tímpanos dos seus amigos...