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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

Os testamentos

26.04.22 | asal

Meu Bom António

João Lopes 11.jpg

Só hoje fiquei disponível para responder às dúvidas do nosso amigo Alcino. Aí vão... Espero ter respondido com clareza. Se não, tentarei melhor! Mas isto é o básico! O próximo sobre o Cântico dos Cânticos seguirá em breve. Um grande abraço, João Lopes
 

Tentativa de resposta às questões de Alcino Alves

    O nosso colega e amigo coloca algumas questões bíblicas a propósito das inscrições nos caixotões do teto da bela Igreja Matriz de Oleiros. Diz ele não perceber que sobre a Virgem Maria se tenham feito citações dos textos do AT, obviamente anteriores  à data do seu nascimento, que, segundo uma antiga tradição, terá nascido no ano 25 a. C, em Jerusalém,  no seio de uma família abastada, na parte nordeste da cidade, junto à piscina da Béthesda.

  Ora bem!  Parece-me que a dúvida do nosso Amigo deriva do pressuposto de que entre os dois testamentos (etimologicamente, Aliança), o Antigo e o Novo, ou, como preferem hoje os biblistas, o Primeiro e o Segundo,  haverá uma rutura ou desconexão, senão mesmo oposição, quando, na realidade, existe uma coerência temática e uma continuidade histórica e teológica.

   Com efeito, entre os textos sagrados dos dois Testamentos (73 ao todo, sendo 46 do Antigo e 27 do Novo), subsiste um vínculo intertextual, uma conetividade íntima e dialógica que  nos permite ler uns à luz dos outros. A Revelação de Deus ao Seu Povo, Israel, e, através deste, à humanidade, não se fez uma vez por todas. Foi-se fazendo gradual e progressivamente pela mensagem enviada aos patriarcas, reis, profetas, sábios, narradores e poetas, em circunstâncias históricas e culturais bem concretas, até culminar na manifestação plena de Jesus de Nazaré pelo ano 6 a 7 a.C., ou, na expressão bíblica da Carta aos Hebreus, “Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho…”1,2.

    Repare-se na diferença: No 1º Testamento,  a revelação divina dispersou-se por vários protagonistas, acontecimentos, discursos e ações; no 2º,  concentrou-se toda na pessoa de Jesus  Cristo, o Verbo incarnado de Deus, o vértice  das  Escrituras Sagradas, que se apresenta como “Promessa” no Antigo e como realização da mesma “Promessa” no Novo.  De facto, a Pessoa de Jesus, revelação do Pai, domina soberana e exclusivamente os 27 escritos do NT, quer como sujeito de ação e discurso, quer como objeto de adoração e reflexão. O Ressuscitado vive entre nós, na sua Igreja que anseia pela sua nova vinda:  “Amen. Vem, Senhor Jesus”, final do Apocalipse.

   Fica, assim, estabelecida a ideia de que os dois testamentos são inseparáveis; por eles corre a manifestação multiforme do rosto de Deus; e que o mesmo Espírito do Senhor unifica os textos numa totalidade semântica, plena de sentido, que exprime, de forma sublime, através de géneros literários diversos, o plano salvífico de Deus.

    Decorre daqui a evidência de que, na Bíblia, ex natura sua, não devemos procurar verdades do foro da  Ciência, mas da Religião.  Esta lamentável confusão, entre a cúpula da Igreja do Séc.  XVII, levou Galileu à morte e a outros desentendimentos com a modernidade.

 Daqui fluem duas conclusões práticas:

 1ª O verdadeiro sentido dos textos descortina-se não numa leitura liberalista, básica e primária, mas numa leitura intertextual, contextualizada e dialógica;

2ª  A Bíblia, um plural coletivo,  deve ser lida do princípio ao fim, na sua ordem textual e cronológica (leitura diacrónica), tendo sempre o cuidado de  ler as notas de rodapé e reler os textos para os quais remetem (leitura sincrónica). Desiludam-se os que julgam conhecer a Palavra de Deus, na totalidade da sua revelação, só pelos extractos das Missas!

  Perdoe-me o Alcino esta longa introdução, mas agora já está em condições de compreender como é que as “citações” inscritas na sua Igreja, referentes ao AT, ganham uma nova atualização, uma vez aplicadas a personagens predominantes do NT. Veja só o caso do Evangelho de Mateus. Ele apresenta Jesus às luz dos textos do AT, como  a realização plena da Promessa feita por Deus ao nosso pai Abraão, dois mil anos antes. Isaías, 7 a 8 séculos antes de Cristo, nos seus oráculos messiânicos, de cariz oralizante, antecipa a vinda do Messias, o Emanuel , o Príncipe da Paz.

  O mesmo acontece com a apresentação da Mãe de Jesus de Nazaré. Ela faz parte daquela plêiade de mulheres bíblicas como Sarah, Agar, Rebeca, Maria, irmã de Moisés, Séphora, sua esposa, Jael, mulher de Héber, Débora e Ana, Ester e  Judite, essas mulheres fortes que desempenharam um papel primacial na História de Israel. E Maria de Nazaré suplanta-as a todas, porquanto, pela sua Maternidade, ela faculta a Jesus, o filho de Deus, a substância de si própria, corpo e alma, a fim de que uma nova vida se possa modelar nas suas próprias vísceras.

  O MAGNIFICAT é um auto-retrato de si própria e um magnífico mosaico de citações bíblicas do AT, soberbamente actualizadas na pessoa e missão da Mãe do Salvador. Uma ressonância épica dos grandes feitos e maravilhas do Senhor chega ainda até nós quando dele fazemos uma leitura adequada, respeitando o ritmo bem marcado e a força e contraste das imagens. Veja-se o tecido colorido e brilhante de versículos: Sl. 110,9; 102,17; 88,11; 106,9;  Is. 41, 8-9;  1Sam. 2, 1-10;Ez. 17,24; 1Sam. 16,10…

 Por fim, devo acrescentar que este era o modo de escrever na antiguidade semita: justapondo fragmentos textuais, colando, cortando, sem demasiada preocupação pela harmonização das diferenças, deixando mesmo repetições e duplicados. S. Lucas, o compositor, era profundo conhecedor do ofício.  E se, por acaso, o leitor ou o ouvinte não o compreendia, tinha naquele como noutro tempo mais antigo, o diácono, o levita, o escriba ou rabino, disponíveis para o esclarecer. (Neemias, 8,7-9) . E sempre havia, ali perto, um conhecedor das Escrituras, que um bom judeu ou cristão se prezava de ser. Ficar às escuras é que não!

     Quanto ao livro erótico da Bíblia, em que a sexualidade desponta em toda a sua beleza, sem a sombra do preconceito ou ataque da misoginia, falarei da próxima vez. Entretanto,  sugiro a leitura  da última crónica de Frei Bento Domingues “ A Páscoa das mulheres!

João Lopes

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