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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

O valor de Kiev

18.03.22 | asal

QUANDO PUTIN SE VINGA DE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA

por Assaad Elias Kattan 

Catedral Kiev.jpg

No momento em que escrevo, os caças do czar estão atacando a linda Kiev, e as sirenes de ataque aéreo estão ecoando por toda parte. “Quem acreditou em nossa mensagem” declara o profeta Isaías: os combatentes de Vladimir Putin estão atacando Kiev, não Tbilisi, Yerevan, Berlim, Paris ou Istambul, e certamente não Nova York. Na verdade, o czar russo quer se vingar dos ucranianos... e de sua própria história. 

Ele está destruindo o berço de sua própria civilização, nunca o berço da civilização ocidental que lhe causa nojo e náusea. Ele está destruindo a Kiev da antiguidade com sua majestosa laura de cavernas que foi estabelecida no século 11 e é considerada a mãe da igreja russa e seu santuário. Milhares são abençoados diariamente com seus ossos que emanam mirra. Ele está destruindo uma Kiev que se orgulha de sua igreja de Santa Sofia que nos remete para o génio do cristianismo eslavo e do seu profundo enraizamento cultural que vem de Bizâncio, precisamente de Constantinopla, das margens do glorioso Bósforo e dos sóis que lá dançam nas ondas.

Kiev teceu os primórdios da civilização do povo russo. Ali, a partir do cuidado e da diligência dos monges helénicos e seus discípulos abençoados, os russos começaram a lançar as bases de sua civilização: livros, arquitetura e ícones onde a luz mora em seu colorido e o significado transparece. Portanto, o ataque que hoje é conduzido pelo mestre do Kremlin ao seu vizinho, ao seu “ponto fraco”, como alguns tolos gostariam de chamar, não é medido apenas por interpretações políticas e económicas; além disso, assume consequências culturais de longo alcance. De facto, a destruição de civilizações não é uma questão passageira, nem uma consequência inevitável de guerras inexoráveis.

Diz-se que aqueles que destruíram Beirute no início da guerra civil libanesa (1975-1990) eram camponeses que guardavam rancor contra a majestosa cidade por causa de suas riquezas, brilho e ritmo louco, o que causou incómodo e confusão para esses moradores do campo. Diz-se também que a beleza de Paris foi salva quando um oficial nazi rebelde se recusou a seguir as ordens do Führer de queimar a “cidade adormecida no jardim de seu flerte (namorico)”, quando os sinais da derrota nazi começaram a aparecer no horizonte. Certamente, vale a pena perguntar o porquê  àqueles que se quiseram vingar de Homs, Aleppo, Damasco e suas áreas e, portanto, deliberadamente os desfiguraram e semearam a destruição em seus bairros antigos.

Quanto ao novo czar hoje, ele se vinga das fontes de sua própria história. Ele atinge a geografia onde floresceu a civilização de seu próprio povo, apesar de se estar a aventurar numa guerra contra a Ucrânia em nome do próprio nacionalismo russo; mas é um nacionalismo dismórfico, misturado com os velhos sonhos imperiais e a arrogância da ideologia soviética que Putin serviu na primavera da sua juventude. Evidentemente, ele não leu história, pois idiotas impenitentes não lêem. Mesmo que ele tenha lido um fragmento da história de sua nação, seu ódio o impediria de se curvar com reverência perante todos os ucranianos que participaram na criação da mesma identidade russa da qual ele hoje tanto se orgulha. Ele porfiou em acreditar que agarrar-se desajeitadamente a essa identidade podia restaurar as antigas glórias da Rússia ou alimentar os pobres com pão.

Quando o Sr. Tsar anunciou a invasão da Ucrânia de sua torre alta, confiando fortemente em seu gigantesco exército, assustador e ameaçador, ele era como alguém que ansiava por uma era longínqua que produziu a União Soviética e permitiu que um bando de tiranos desprezasse a liberdade das pessoas e pisasse seus sonhos de Irkutsk a Cabul. Putin não percebeu que o Muro de Berlim agora se tornou uma mera atração turística, e que a história não volta atrás. 

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No entanto, o mais importante no caso deste novo czar é que ele parece ser o primeiro tirano que conduz uma guerra contra sua própria história, sua própria civilização e contra si mesmo, golpeando Kiev, a cidade mais autêntica da história do povo Russo, mesmo que ela seja hoje a capital da Ucrânia.


Assaad Elias Kattan é um teólogo ortodoxo libanês e professor de Teologia Ortodoxa no Centro de Estudos Religiosos da Universidade de Münster, Alemanha.