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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

O óbolo

22.01.21 | asal

Meu Caro António, hoje, não pude sair. Aproveitei a tarde para ler e escrever sobre o de que mais gosto: as Sagradas Escrituras. A literatura profana que espere! Já lhe dediquei muito tempo. E o que me resta... Indicarei depois os livros mais acessíveis sobre Jesus para quem quiser. João

João Lopes d.jpg

 

Preparando o dia 24… lembrado aqui pelo nosso Bispo.

 

   Segundo Tolentino de Mendonça, Lucas tem como objetivo principal apresentar-nos o longo processo da identificação de Jesus. Quem é afinal este homem ? Era a pergunta que os seus leitores do mundo pagão, romano e helenístico se faziam.

  Aponta alguns pontos altos em que Jesus se revela como homem e pessoa, dotada de uma inteligência e sensibilidade extraordinárias, muito acima do comum. Os fariseus, abertos à novidade, e um dos quatro grupos do panorama judaico menos antipáticos para Jesus (entre os Saduceus, Zelotas e Essénios) gostavam de o convidar para a sua mesa. Vejamos apenas dois ou três episódios focados nas relações de Jesus com esse grupo, empenhado no escrupuloso cumprimento da Lei, pregação e estudo das Escrituras e na Oração.

  O Doutor e Cardeal Tolentino elabora toda a sua tese de doutoramento sobre o comentário de Lc, 36-49, o da famosa pecadora sem nome, que, sabendo da presença de Jesus em casa de Simão, fariseu, irrompe pela sala de jantar, sem pedir licença; reconhece imediatamente o convidado, coloca-se aos seus pés que banha com lágrimas, enxagua-os com os cabelos, ungindo-os com  perfume.  Não diz palavra, mas aqueles gestos da mais elementar hospitalidade, acompanhados de um sentimento de amor profundo, têm um impacto emocional tremendo sobre o ambiente dos convivas.

  O anfitrião sente-se duplamente escandalizado: ela acabara de fazer o que ele não fizera, mas devia, como mandavam as regras. E, se Jesus era o profeta que o povo proclamava na praça pública, porque se atreve a receber, com manifesto agrado, aquela manifestação de carinho por parte de uma mulher impura?  De facto, entre o mundo do fariseu e o de Jesus havia uma distância abissal! E duas concepções de Deus, do homem e da mulher, absolutamente antagónicas. O clímax daquela assombrosa revelação acontece quando Jesus diz ao anfitrião: “Por isso, digo-te que lhe são perdoados os seus muitos pecados porque muito amou.”  E muito amou porque já vinha acreditando na bondade infinita de Jesus. A Fé terá começado quando, pela vez primeira, o viu e ouviu. Lucas omite este facto porque acredita, antes de mais, na inteligência dos seus leitores.

  Um outro episódio relata-nos a discussão com os saduceus a propósito da ressurreição dos mortos. A argumentação de Jesus, própria de um verdadeiro Rabino, Mestre da Lei oral e escrita e especialista nas técnicas da interpretação (MIDRASH  HalaKa e outras de que tratarei noutra altura sobre as caraterísticas da escrita e da leitura especificamente hebraicas) mereceu logo ali a concordância dos fariseus. Lc. 20,27 e ss. Os Doutores da Lei, o grupo mais culto dos fariseus, assombrado com a capacidade argumentativa do Mestre, passaram-lhe logo ali uma espécie de certidão de doutoramento.  “ E já não se atreviam a interrogá-lo sobre mais nada.”  

      Era o fim de um aceso e longo debate começado quando Jesus tinha apenas doze anos! No fim do 2º ciclo de estudos, provavelmente em Séforis, como direi na próxima ocasião.

     Só que o doce e contundente Rabbi da Galileia não se deixou calar pela lisonja e logo ali dispara contra a hipocrisia dos doutores da Lei e a sua pouca vergonha em devorar, com orações, os bens das viúvas. E, como palavra puxa palavra, o evangelista refere, de imediato, a pequenina cena do óbolo da viúva. “ Viu também uma viúva pobre deitar lá duas moedinhas. (21,2.)

   Esta viúva pobre (mas não uma pobre viúva!) deitou mais do que os outros, porque, apesar da sua indigência, o fez com o coração e não por vaidade. E assim ficou um gesto, para sempre gravado na memória dos séculos, até aos dias de hoje.

João Lopes