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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

O Cântico do Cânticos

03.05.22 | asal

Meu Bom Amigo

João Lopes 11.jpg

  Aqui te envio a 1ª parte do meu estudo sobre o Cântico dos Cânticos. Só depois da 2ª e última parte, se poderá fazer um juízo crítico. Espero ser útil a quem tiver paciência para me ler. Dizem tratar-se de um dos livros mais estranhos, complexos e desconcertantes da Bíblia. Mas, tratando-se de Amor, já Camões dizia que são tantas as suas contradições que nem o mesmo Amor a si se entende. Lá vamos, caminhando, pobrezinhos e mendigos, pedindo  ao nosso Deus que nos valha porque uma vida sem amor deve ser cavernícula, gelada e desumana, como a do senhor do Kremlin e a do seu sacristão, como diz o nosso Milhazes. Um grande abraço agradecido e vamos pensando no Encontro. João
 

O Cântico do Cânticos, que é de Salomão

     ( Séc. V, a.C. na época  pós-exílica)

        (…forte como a morte é o amor, implacável como o abismo é a paixão.) –diz Ela, 8,6)

1.Um livro perigoso

  Em 1577, Frei Luís de Leon, agostinho, professor de Teologia,  entrava  na Universidade de Salamanca, regressado de uma dura prisão de cinco anos, nos calaboiços da Inquisição, por ter cometido a ousadia de traduzir para castelhano o livro sapiencial “Cântico dos Cânticos”. Fosse outro o livro sagrado e não teria passado por este calvário.

   O frade sobe ao estrado e começa a aula: “ Como dizia ontem…”

  Desde a sua composição, no séc. V a. C., em Jerusalém, que este belo cântico de amor se encontra sob suspeita. Foi escrito como um livro de contestação e protesto contra uma sociedade, mergulhada numa grave crise de valores morais e familiares, que fazia da mulher um objeto de uso e descarte e do casamento um negócio ou um contrato que, a qualquer momento, o homem podia desfazer. Ao apresentar uma experiência da relação amorosa, entre dois jovens amantes de sexo diferente, que se desejam com ardor, indiferentes a qualquer interesse material, procurando tão-somente o amor, como valor absoluto, que a si mesmo se basta, o poema distancia-se de uma visão materialista, precária e utilitária do matrimónio, então predominante.

   Nestes cantares, vive-se o amor físico e corpóreo, com naturalidade, exprimindo-se os amantes numa linguagem sensorial, recheada de imagens sensuais audaciosas, o que pode explicar o impacto impressionante em sucessivas gerações de ouvintes e leitores.

  1. Um diálogo apaixonado em que predomina a voz feminina

 Duas vozes se entrelaçam e respondem, construindo um discurso amoroso, aqui e ali entrecortado pelo coro das filhas de Jerusalém, com o papel de confidente ou de ampliação do maravilhamento, dúvida e receios que os protagonistas  provam  durante o seu percurso  de conhecimento e sedução. “Antes de mais o Cântico é um universo sonoro de apelos, de ecos e réplicas. Ele não fala simplesmente de amor. Canta o amor. É o amor que jorra na palavra.” (Anne – Marie Pelletier, a maior especialista  na leitura deste livro in Cadernos Bíblicos , nº75, Difusora Bíblica)

 Pois bem. Numa sociedade marcadamente masculina, é talvez a primeira vez em toda a literatura hebraica que a mulher assume o papel predominante na condução da troca das palavras, na marcação das entradas e saídas e no convite pressuroso ao amigo para ensaiarem os dois uma corrida louca e infrene pelos campos perfumados,  “Corramos … corramos". Não é por acaso que o primeiro elogio que o amante lhe faz(1,9) é a comparação do seu porte a uma égua de Faraó, símbolo da iconografia cananaica e grega para aludir ao esplendor da mulher...Teócrito utiliza o mesmo símile para cantar a beleza de Helena. No conto e canto desta linda história de amor, através de um diálogo, ela fala diretamente por si mesma, dirigindo-se ao amado, num face a face que dispensa qualquer narração.

  De facto, o centro de todo o poema é a jovem que profere com a sua boca a maior parte dos 117 versos. Mais. Ela é o pólo de atracão que conquista com o seu olhar o coração do jovem. Tudo parece passar pelo filtro da sua perspetiva.

   Com efeito, é ela que dá início ao poema, abrindo a sua boca latejante de amor: “Que ele me beije com beijos da sua boca” - boca do amado e não de outro. É também ela que o termina com um convite ardente, repassado de saudade e prenhe do desejo de voltar a repetir a mesma experiência (8, 14). Afinal, um encontro interminável, porque susceptível de ser sempre renovado, uma ferida que nunca  se fecha, um  amor  firme e fiel, que,  de modos vários e criativos,  se exprime e continua pela vida fora. Devo esta expressão do “ encontro interminável” a Tolentino Mendonça que sobre o Cântico nos oferece um dos mais belos textos que já li. (A leitura infinita. A Bíblia e a sua interpretação, 2015)

  A mulher comunica, de forma livre e desinibida, o desejo pelo “corpo” do amado, que se lhe equipara neste diálogo intersubjetivo e reversível em que o Eu e o Tu se falam, cada um por sua vez, utilizando a mesma linguagem erótica em que as palavras de um deslizam para o discurso do outro. Daí as repetições, retomada e repetições, que além de reforçarem a coesão textual, revelam a sintonia plena dos corações. Boca com boca, assim jorra o amor nas palavras!

  No entanto, nas exclamações de alegria do encontro e na dolência e tristeza do desencontro, é a mulher que se destaca, como nota o biblista Carreira das Neves. “ No Cântico, a amada sobressai em relação ao amado, o que representa uma revolução no paradigma clássico e bíblico entre o homem e a mulher” (O que é a  Bíblia, Casa das letras, p. 232). Por outro lado, o mesmo biblista confirma o que atrás foi dito sobre a vivência do amor, em si e por si: “ Os cantos celebram o amor do par humano e exaltam as suas delícias. Não é preciso pensar em canções de boda, embora não se possa excluir a priori  o seu uso posterior em tais celebrações.”

  1.  Leitura alegórica e aceitação no Cânon das Escrituras hebraicas

   Este saboroso livro, tão popular que até nas tabernas se cantava, e, naturalmente, aproveitado nas cerimónias de casamento onde tinha o seu lugar próprio, como pertencente ao género lírico do “epitalâmio” ( Ct.3,11, em que se evoca o casamento de Salomão) durante vários séculos, deparou-se com a recusa do judaísmo oficial. Pelo que já foi dito, é fácil descortinar a repugnância por uma confissão tão descarada do amor natural, apoiada em imagens provenientes de um fundo oriental politeísta. Até que um dia se fez luz! No concílio de Jabné, sec. I, depois de uma calorosa discussão, os rabinos apresentaram a sua leitura alegórica.

     E, pelas portas travessas da alegoria, transpôs-se um Cântico de amor humano, numa imagem viva do amor, igualmente incandescente, de Deus por Israel. E nem foi preciso alterar as palavras. Apenas, um sentido espiritual no texto foi injetado.

      Verdade seja dita que profetas como Isaías, Jeremias, Oseias e Malaquias já haviam dissertado largamente sobre a Aliança de Deus com o seu Povo, com recurso à linguagem conjugal. Depois de uma reflexão profunda, o  Rabbi Aquiba terá dito: O mundo inteiro não vale o dia em que o cântico foi dado a Israel, pois todos os escritos são santos, mas o Cântico é o Santo dos santos”. Deste modo, não foi difícil ao cristianismo acolhê-lo com admiração e espanto, com se vê nos comentários de Orígenes (séc. III), S. Bernardo (séc. XII) e de tantos, tantos  outros.

  Livro especialmente lido nos conventos. Com as devidas precauções, previstas nos regulamentos, não fossem os frades ou as monjas, sobretudo, os mais jovens, ceder a uma leitura literal, à linguagem livre de um poema que, em primeira mão, canta a sedução, o corpo, a paixão, o estremecimento e o prazer melífluo da união. Para isso, toda a vigilância, ascese e preparação espiritual para se entender e cantar a divina mensagem da alegoria.” Et quand même!”  (Continua)

 João Lopes, Coimbra, maio de 2022

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