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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

Num dia de tarde de verão

13.02.19 | asal

ONDE SE REVELA UM ESTRANHO DIÁLOGO    

pires da costa.jpg

ENTRE O ESCREVINHADOR E  UM JARDIM

 

       Na história que vou narrar não há coincidências. Conta-se a verdade, só a verdade e toda a verdade.

        Num daqueles dias confusos entre o final do verão e o começo do Outono, na procura de um pequeno repouso, sentei-me num dos bancos do jardim municipal da cidade.

        Com uma temperatura amena e o astro-rei a aproximar-se do final  da sua ilusória trajectória diária, era  evidente o início da desertificação daquele privilegiado recanto citadino.

        Dominado por um estado de espírito  inclinado para a melancolia, sentei-me,  propositadamente, num banco situado num recanto ermo que me poderia proporcionar alguns momentos de recolhimento e meditação.

        Eram poucos os frequentadores do parque naquela hora. À excepção de dois passeantes que na relva conduziam  dois cãezinhos pela trela, (mas sendo bem notório que estes é que puxavam por aqueles)  em passeio habitualmente designado por higiénico ( para as suas habitações, que não para o parque), só lá ao longe se reuniam alguns mais idosos, por certo reformados, uns sentados e outros de pé em volta do banco, discorrendo sobre a vida, falando de tudo e de nada, mas de forma sadia e divertida, como era fácil  deduzir pelas gargalhadas de alguns e a gesticulação de outros.

      Porque do que diziam pouco ou nada  era perceptível aos meus ouvidos, e na ausência de outros barulhos que pudessem perturbar a serenidade e a placitude do local, e ainda envolvido por ligeira brisa que refrescava o ambiente, apoderou-se de mim uma certa languidez que me transportou para uma lassidão que me terá atingido de forma morfética. Eis senão quando sou despertado por uma voz forte e seca, denunciadora de alguma angústia, acompanhada por um ligeiro abanão do banco em que repousava.

       Despertei da letargia em que havia caído e, instintivamente, procurei ao meu redor uma explicação para  aquela surpresa tão bruscamente sentida.

      Direcionei o meu olhar em todos os sentidos e apurei o ouvido, mas nada vislumbrei que pudesse explicar o estranho fenómeno que me envolvera.

      Admitindo, com sérias dúvidas, que tudo não passara de um sonho, procurei tranquilizar-me. Recostei-me de novo, cruzei as pernas  e procurei refletir um pouco mas, passados alguns momentos, saiu-me naturalmente um desabafo perfeitamente audível : - Mas que raio terá acontecido? Senti e ouvi e não vislumbro nada nem ninguém que possa ter originado a minha estupefação. Não haja dúvida, tratou-se de um ligeiro sono.

       Encontrava-me neste cogitar, quando ouço a mesma voz  que profere estas palavras:

        - Não foi sonho, não ! O que ouviste foi um desabafo como tenho tido já outros, já que motivos não me têm faltado. E o abanão do banco não foi ilusão, foi um tique nervoso mais intenso do que o costume. De vez  em quando dá- me isto e ninguém costuma dar por tal, mas desta vez excedi-me um pouco, desculpa lá o susto…

        - Coisa estranha! – exclamei. Mas quem é que falou? É que não vejo nada nem ninguém, o que me torna cada vez mais confuso.

   - Não tens olhos na cara? Em volta de ti, o que vês ?

   - Vejo plantas, flores, árvores, relva, bancos, candeeiros e pouco mais.

   - Se assim é, tu que és homem e que, como todos os outros, te julgas inteligente e um ser superior dentro da natureza, acabas por fazer figura de estúpido.  Sou eu mesmo, o jardim do parque onde te encontras. Ou pensas que eu não tenho alma e reacções como vós?

    - Ah!.. – exclamei surpreendido.

    - Estás admirado? Pois olha que eu, aqui onde estou, tenho muitos desabafos. Só que os homens (esses seres que se julgam muito espertos e que às vezes até metem dó) não me ouvem ou não me querem ouvir. Pois fica sabendo que , aqui onde vivo, sei mais da minha vida do que vocês e sei mais da vossa do que possas imaginar.                                                                                        

-Pronto, está bem. Mas, afinal, do que te lamentas e porque te irritas? Por mim, parece-me que até és bem tratado  e que muitos te acarinham.

- Parece-te! Mas nem sempre o que parece é. Então achas que não tenho razões fortes para me revoltar depois da violência que ontem aí houve em cima de mim, deixando feridas a sangrar que não sei quanto tempo levarão a cicatrizar?

- Concretiza lá isso melhor, pois não percebo onde queres chegar.

-É o que eu digo… Vê-se logo que és de compreensão lenta. Ou então és insensível como esses assassinos da tua raça, a que chamam humana, que, de vez em quando, por aí andam a fazer um morticínio impiedoso, cortando e derrubando árvores, enraizadas no meu seio e que, sem nada receberem em troca, embelezavam, refrescavam e  protegiam não só este local mas toda a parte central da cidade. Só ontem foram duas.

- Mas espera lá. Tem cuidado e não faças juízos precipitados. Aqueles a quem chamas assassinos foram mandados por outros, os que têm a responsabilidade de superintender nos  interesses da cidade.

- Desculpa! Mas assassinos tanto o são uns como outros. Tu ainda não percebeste que a sociedade dos homens funciona na base do seguinte: os que usam mais artimanhas para ascenderem aos melhores lugares, os tais que têm direito a « Vossas Excelências», são os que mandam. Os outros, os que lá não estão e andam cá por baixo, ficam assim porque não tiveram arte e proteção para lá chegar. Mas uns e outros sois todos a mesma coisa. Uma democracia em que uns dominam outros, ainda que disfarçadamente e de forma sub-reptícia (vê que também conheço palavras difíceis!)  não passa de uma ditadura disfarçada. Poderá haver diferenças remuneratórias, mas nunca com os valores que por aí se vêem e que numa sociedade justa não se justificam. Tu, porventura, já reparaste na palhaçada em que se vive todo o ano neste país que faz que anda mas não anda?

- Mas, afinal…

- Cala-te! Deixa-me acabar. Perguntava eu se tens reparado na tal palhaçada que se repete dia a dia e todo o ano. Como por certo não notas nada, eu explico-te. É apenas isto:  Os que estão no poder – ou no poleiro, como vocês dizem – passam o tempo a gabar-se do que fazem e do que não fazem, e os que não estão no poder, ou na mó de baixo, como costuma dizer-se, passam a vida a dizer mal dos outros como se fossem os portadores de todo o saber e donos da verdade. E o pior de tudo isto é que não se enxergam e não se apercebem do ridículo que transmitem para quem os observa  e analisa com objetividade. Trocam-se os lugares  e a música fica sempre a mesma. Só que os intérpretes são agora outros. É o que vocês, em linguagem  rasteira, chamam a  alternância do poder. Todos sabem muito, mas pouco ou nada fazem. Lata no falar e no escrever é que não lhes falta, mas dizem sempre a mesma coisa.  Todos querem mais justiça social, mas depois enganam-se sempre: os ricos  estão a ficar cada vez mais ricos e os pobres cada vez são mais e mais pobres.  

- Estou a ver  que também percebes de política!...

-Com tudo o que daqui vejo e ouço, nem é para admirar. Sei muito mais do que vocês julgam e muito mais do que muitos de vós. O que também não é muito difícil com a ignorância que por aí vai. Mas adiante.

      Aqui houve uma pequena paragem no diálogo que resolvi retomar pouco depois.

- Quer dizer que sofres muito com o abate das tuas árvores?...

- E não achas que tenho razão para isso?

- É possível. Mas, segundo penso, isso só acontece quando já estão muito envelhecidas e constituem perigo para as pessoas que por aqui circulam. O ano passado, ainda me lembro de duas que caíram com uma ventania muito forte, género vendaval,  e uma delas até danificou um carro que estava estacionado perto dela. Fez dó ver o carro naquele estado.

- Coitadinhos dos carros! Está visto. Afinal, tu e os da tua raça apreciam mais os automóveis do que as árvores. Eu já desconfiava, mas agora tenho a certeza. Uns imbecis é o que vós todos sois. Esqueces-te de que há vida na terra há milhões de anos sem automóveis, pois estes só existem há pouco mais de cem. E sem árvores na terra alguém poderia viver? Sabes bem que não. No entanto, matam-nas sem esperar que elas morram. De pé, que é como devem morrer as árvores. Morrerem por velhice ou doença, é uma coisa; matarem-nas enquanto são úteis é outra. Mas que mais se poderia esperar de vós que vos matais uns aos outros em guerras contínua, onde o roubo é o principal objetivo dos que se julgam no direito de serem os donos do que é seu e dos outros, como se isso fosse a coisa mais natural deste mundo? Vê lá se as árvores se matam umas às outras ou se fazem guerras organizadas como vós… Se alguém nas vossas famílias - e quase todos os dias há casos desses em todo o mundo – é morto por outrem de forma violenta e inesperada, como reagis a uma situação dessas?

Então não dizes nada? Perdeste o pio?

- Tens alguma razão no que dizes, mas hás-de compreender que…

  Nisto interrompeu-me e, exaltado, exclamou:- O que compreendo é que vivo nesta amargura de sofrimento pelas feridas que me atingem cada vez que abatem alguma árvore, neste recanto como por todo o planeta,  sem sequer me avisarem, como quem se julga dono da natureza sem se aperceberem que sem ela não poderiam sobreviver. E eu que me sinto tão feliz pelo bem que proporciono a quem me visita ou apenas circunda por tantas árvores altas, frondosas, belas  e até generosas! Vai-te embora que é quase noite e preciso de repousar para ver se adormeço e alivio a minha angústia. Deixa-me em paz .

- Tens razão, mas tens de compreender que o tratar da saúde provoca algum mal estar para que depois possamos ficar um pouco melhor.  

- Olha lá. Tu pelo que já observei até sabes ler e escrever. Mal, mas saberás. Sendo assim, não poderias escrever num jornal o que te disse, para que os teus comparsas tomem juízo e passem a respeitar-se mais uns aos outros, principalmente os que enriqueceram à custa dos sacrifícios de muitos milhares que, para além de pessoas sérias e trabalhadoras são tão humanos como eles? Poderia ser que assim houvesse mais justiça e todos pudessem ser mais felizes.  Conhecendo  o mundo como julgo conhecer – muita gente vem para aqui ler jornais e ouvir os rádios e eu oiço tudo - e sabendo o muito que se escreve todos os dias sobre o dito assunto sem quaisquer resultados práticos, já que a ambição humana não tem limites  e muitos não olham a meios para atingirem os seus fins, utilizando todos os meios e estratagemas, por mais incorretos e imorais que possam ser nos conceitos consuetudinariamente estabelecidos pelo senso comum.

     Refletindo sobre tudo isto, achei melhor não continuar o interessante diálogo com o meu sensato interlocutor. Escrever bem ou mal já não interessava, já que sabia das inutilidades de tudo o que escrevesse. Confuso e acabrunhado, tive um gesto de defesa instintivo. Levantei-me,  caminhei e recordei as palavras que ouvira. E, com alguma  amargura, ia  reconhecendo que o meu companheiro fora um crítico duro, mas que pusera a nu muitas das maleitas de que enferma a humanidade de que faço parte. 

       E será que algum dia nos libertaremos de vícios que se têm acumulado – para não dizer instalado – nos nossos comportamentos, na nossa conduta social, nas nossas relações com os nossos semelhantes, perdendo algum egoísmo e intolerância em que, por vezes, nos deixamos cair involuntariamente e até que inconscientemente? Jamais o ser humano será perfeito. Mas que é sempre possível, dia a dia, mês a mês, ano a ano, no decorrer do tempo da nossa peregrinação, sermos mais homens, mais mulheres, disso não tenhamos dúvidas. Será possível que um dia as sociedades do planeta poderão viver e conviver sem forças de segurança organizadas? Quem ousará responder sem sentir uns arrepios na consciência?... Conseguirá a humanidade alguma vez atingir a qualidade da vida - na paz, na serenidade, na tranquilidade, na convivência, na partilha de interesses – do jardim público da  minha cidade? Cada um responda como entender. Por mim, para não parecer um moralista arquitetado na utopia, continuarei as conversas com os muitos jardins e  tão lindos que embelezam aldeias, vilas e cidades de todo o mundo. E com as pessoas, claro.  Entretanto, enquanto regressava a casa e recordava o diálogo interessante e real que mantivera com o meu interlocutor, fui-me preparando para, quando de novo nos encontrássemos, lhe fazer compreender que afinal talvez tenhamos sido demasiadamente rigorosos em relação aos nossos semelhantes – decidi já catapultá-lo para o meu grupo – e fazer-lhe compreender que, apesar dos muitos desvios existentes no comportamento humano  em relação às sociedades em que vivemos, há também muitas condutas boas, dignas, solidárias, exemplares de que todos nos podemos orgulhar. E sem fazer estatísticas de qualquer tipo, é fácil afirmar, sem  risco de errar que, apesar de tudo, os bons superam em muito os – ia a dizer maus, mas corrijo-me – menos bem comportados, já que só conseguiremos sentir a felicidade  se contentes com a nossa consciência. Entretanto, para não desanimarmos com a aparente – ou real? – lentidão das muitas correções que desejaríamos mais rápidas, vamo-nos refugiando na velha frase conformista: «Que havemos de fazer, o mundo é assim?!…» Com alguma naturalidade e sem estupefação que bula com a nossas consciências e agarrados à esperança que, como muito se diz, é a última coisa a morrer. E se com esta recuperarmos a velhinha mas sempre atual trilogia: Fé, Esperança e Caridade, não duvidemos de que o nosso arcaboiço ficará reforçado para que as nossas vidas, bem como as dos nossos semelhantes, possam ser mais dignas e mais humanas.

A. Pires da Costa 

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