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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

Leituras de verão

27.08.18 | asal

Esta linguagem é imperdível na sua autenticidade histórica. O Pissarra lê Vitorino Nemésio. AH

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Mau Tempo no Canal

Enquanto recebo fotos dos netos em férias nos Açores, lembrei de revisitar o inesquecível comunicador açoriano que conheci pela TV – Vitorino Nemésio. As fotos eram um ótimo pretexto para lhes falar dele e, por isso, embrenhei-me na releitura do "Mau Tempo no Canal". Talvez a coincidência geográfica e a sua travessia do canal fossem um bom pretexto para uma conversa interessante.

Deliciei-me com o encontro de palavras e expressões da minha infância em Idanha e, há muito, caídas em desuso. A escolarização ditou a perda duma riqueza vocabular a que a normalização do português pôs termo. Apenas a título de exemplo: rilhar (comer, trincar), (a)levantada da cabeça (com pouco juízo), palitos (fósferos), derriço (namoro, gracejo), enrefegadas (cheias de refegos), piadade (piedade), munto (muito), questumados /aquestumados (habituados), talisga /talisca (pequena fenda, pedacinho muito delgado), fusco (escuro), assanhar-se (zangar-se) e tantos outros. Nem todos tinham, naturalmente, correspondência no meu vocabulário da infância. Tudo o que se referia ao mar e às especificidades dos falares ilhéus era uma verdadeira redescoberta e agora com novos sabores.

Quem passou pelos seminários, como eu, não pode ficar indiferente a nacos de prosa como a que se segue:

«Apesar de haver esperanças de cura (era uma doença de espinha), e o morgado José Urbano ter o filho segundo de reserva para lhe suceder na casa, meu avô Constantino, que tinha aprendido Português Final e latinidade com um frade das Velas, teimou em entrar para o seminário … »

-- Desculpe o aparte, Barreto: mas já reparei que cá nas ilhas há muito aprendiz de padre – disse Roberto, de repente chamado ao seu forro inglês da City.

-- Houve … corrigiu Diogo Dulmo. – Contam-se os rapazes do meu tempo que embarcaram para Angra e vieram de lá de coroa aberta. O Pires, que foi cura do Salão; o Chico Goulart e pouco mais. Os despadrados, pelo contrário, são às dúzias. E todos boas rolhas …-- não há dúvida! Olha o Reis … esse maroto do Leal, que ainda agora nos dá que fazer … Sem falar no malandro do Januário, o bola de unto!

-- Pai …!

No Pico, sim; no Pico é que há vocações. Até deu bispos! O nosso D. João Paulino. Basta citar o caso do irmão, do Pe. Xavier, que se ordenou viúvo e cheio de filhos. Uma vez, que o bispo veio às ilhas de baixo, diz-lhe o Pe. Xavier, em casa do ouvidor: «Agora dê-me V. Ex.ª Rvd.íssima licença que lhe apresente os meus filhos!» E avançaram ali rapazes já de bigode .. e mulheres feitas, casadas … E o bispo, apesar de conhecer o caso, um pouco arrepiado, brincando com a cruz ao peito … Foi uma coisa bonita! …

-- Lá isso … Creio que meu avô Constantino não tinha vocação nenhuma – disse André, um pouco impaciente com semelhante digressão. – Era talvez uma maneira de sair de S. Jorge … ver outras terras … Naquele tempo não havia grandes pretextos para isso.

-- Hem? … Uma viagenzinha à Itália, como a que você fez o ano passado … Que diria o velho a isso? … Guardado está o bocado – disse Diogo.”

Vitorino Nemésio (2018). Mau tempo no Canal, Lisboa, Livros RTP: 286 – 287.

Mas, não posso deixar passar a oportunidade de lhes servir um pequeno, mas gostoso prato do linguarejar dos pescadores de baleia. Uma óptima sobremesa. Faça favor de degustar:

“isto é ua pérola d’ua menina! Tamém vem oivir o velho? … Pois era … ‘Tava aqui a dezer ò sê tio e ò papai que comecei a balear munto antes das sortes … ainda botava o mê pião lá ua vez por oitra. Só qu’ria uma pataca por cada vez que mê pai me puxou pola ponta da fieira qu’ê deixava caiir aqui im riba da fralda, na pressa de m’iscunder … Ficava mai’rico qu’ò Sr. Altre Bensaúde! Aquilo é qu’era tempo! E um rospeito …! Quem pertindia a uma campanha pidia a bença ò mestre, como hoij’im dia só se pede a pai e a mãe … q’ando é!”

Vitorino Nemésio (2018). Mau tempo no Canal, Lisboa, Livros RTP: 297.

Aguardo o reencontro com os meus netos para fazer desta leitura tema de conversa e aprendizagem.

Mário Pissarra

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