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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

IMPÁVIDOS E SERENOS

06.01.17 | asal

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NOTA: Desculpem esta teimosia em trazer para aqui o Sr. Bispo. 

Não é para o cativar, para o atrair aos encontros... Nós nem o convidámos, embora fosse uma grande alegria vê-lo por Linda-a-Pastora! A verdade é que não se pode perder este texto, cheio de bonomia, graça literária e doutrina profunda escrita de modo leve e cativante. Eu bem te disse, Pequito Cravo, que os textos do Sr. Bispo eram enormes. AH

 

OS MAGOS AVANÇAM IMPÁVIDOS E SERENOS

 

A luz brilhou sobre a cidade e ninguém ficou indiferente. Uns, porque aguardavam ansiosamente este momento em que ela brilhasse. Outros, surpreendidos, ficaram receosos, com azia no estômago e bílis alterada. Outros manifestaram-se incrédulos porque estavam à espera que a tal luz se fizesse anunciar a suas excelências, que viesse de forma mais snob, mais curial, mais espetacular e nada disso estava a acontecer… Os Magos, esses sim, esses souberam interpretar os sinais dados. Esses viram a estrela, a luz do Senhor, a luz que ilumina o coração de todos os homens, um Menino recém-nascido. Não se interessaram nada quanto ao modo da sua chegada, se de tuk-tuk ou de foguetão, se de smoking ou maltrapilho, se em berço de ouro ou em palhinhas deitado. Eles próprios, os Magos, é que são imaginados com traje de grande gala e pose de muito catitas. E ao que se diz, até se fizeram transportar em camelos e dromedários, talvez por ser mais cómodo e mais barato, sem portagens nem limite de velocidade. Atentos aos sinais, viram a estrela, a luz do Senhor, deixaram tudo e vieram ao encontro de Jesus. Representam todos os homens de boa vontade, todos os povos da terra, todas as raças e culturas, todos aqueles que se deixam guiar pela paz e pela luz de Cristo. São a imagem da Igreja multicultural que apela à unidade da fé mas não à uniformidade das culturas.
O rei Herodes, porém, ficou pacificamente furibundo. O seu nervosismo miudinho e amedrontado contagiou a cidade. Com ar suavemente camaleónico, fez reunir os manda chuva lá do sítio, um comité de sábios, o seu conselho de estado ou a geringonça do tempo que, aliás, nessa ocasião não funcionou. Herodes desejava apagar aquela luz, precisava de razões, de apoio e de aplausos, não de promessas nem de demagogias, não de concertações feiras de gado ou de conversas de chacha. E perguntou-lhes onde é que devia nascer o Messias, ao que eles responderam: «Em Belém da Judeia, porque assim está escrito pelo profeta: ‘Tu, Belém, terra de Judá, não és de modo nenhum a menor entre as principais cidades de Judá, pois de ti sairá um chefe, que será o Pastor de Israel, meu povo’».
Parece que os conselheiros papaguearam o que sabiam de cor e salteado, mas sem se preocuparem muito com o trabalho de casa, com o estudo dos dossiers. Deram poucas informações sobre esse “chefe” que acabava de nascer e nada disseram ao rei sobre a boa notícia que era para todo o povo a missão desse recém-nascido. De profissionais das Escrituras, de quem se ufanava de saber tudo, esperava-se mais um poucochinho de convicção e entusiasmo. Parece até que ficaram indiferentes e também nas tintas para com as preocupações do rei. Os Magos, porém, lá seguiram o seu caminho fazendo ouvidos moucos às palavras loucas de Herodes. Tendo encontrado o Menino, prostraram-se diante d’Ele, presentearam-n’O com oferendas, deixaram-se iluminar por Ele e caminharam à sua luz. Ao regressarem a casa por outro caminho, contagiaram muitos outros nesta alegria de ir ao encontro de Jesus, o Salvador.
Mas Herodes não demorou em dar ordens. Não sei se as deu com acordo ou sem acordo dos outros atores do arco da governação numa atitude democrática e patriótica e de unidade nacional, como sói dizer-se. Mas se ele matou a maior parte das suas dez mulheres, vários filhos e muitas pessoas que politicamente o incomodavam, que outra coisa se haveria de esperar... Pois não tardou que se ouvissem por toda a parte os gritos de dor das mães que choravam a morte de seus filhos inocentes sob as ordens do rei.
Mas o sofrimento de tantas crianças e de tantas mães continua hoje sob a impotência de uns, a ganância de muitíssimos, a indiferença de quase todos. Há milhões e milhões de crianças traficadas, deslocadas, escravizadas, refugiadas, violentadas, militarizadas, esfomeadas. A UNICEF diz-nos que em 2030 serão 167 milhões as crianças que viverão em pobreza extrema; 69 milhões, com menos de 5 anos, morrerão entre 2016 e 2030, e 60 milhões não frequentarão o ensino básico. Lamentavelmente, muita gente já não tem a vida como um valor a defender e a promover, a não ser a sua própria que rodeiam de todos os direitos sem qualquer dever para com a vida dos outros. Nestes tempos em que se debate a questão da eutanásia, já se começa a querer proibir que se fale contra o aborto. Lia-se em jornais do mês passado que, “na França, os socialistas no governo apresentaram “uma proposta que visa considerar os sites da internet e outros centros que difundem informações contrárias à interrupção da gravidez “com finalidades dissuasivas” culpadas de “obstrução à interrupção voluntária da gravidez”, e, portanto, passíveis de fechamento”.
Como seria importante se, como os Magos, todos procurássemos a Verdade e voltássemos a casa por outro caminho, o caminho do amor, do respeito pelos outros, a começar pelos mais pequeninos e indefesos.

HISTÓRIA ANTIGA

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças”.

Miguel Torga, in 'Antologia Poética'

 

Antonino Dias
06/01/2017

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