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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

Homenagem ao Pe. Manuel Martins Pinheiro (II)

21.03.19 | asal

 

Pissarra.jpg    Nos primeiros tempos no seminário de Valadares, fiz a primeira tentativa de deixar crescer a barba. Os olhares de reprovação eram muitos, mas ninguém me dizia nada. Os outros seminaristas, quer da Sociedade quer da diocese, iam mandando as suas bocas, pois ainda não havia nenhum com qualquer tipo de ornamento com pelos. A hora que esperava chegou. O Pe. Pinheiro disse-me para passar pelo seu quarto, pois queria falar comigo.

     Fiz a barba e à hora combinada apresentei-me. Quando olha para mim diz simplesmente: «já não tenho nada para te dizer!» Conversamos sobre coisas várias e convidou-me para ir ao cinema. Fomos ao Batalha ver o filme O Amante. No final fomos lanchar a uma cervejaria ali perto. Comentámos e discutimos o filme. Pergunta-me ele sobre uma cena em qua a personagem feminina se envolve sexualmente com o historiador: «sentiste alguma coisa?» Laconicamente, respondi-lhe: «sou homem!». Não adiantou mais nada e eu também não estava interessado em discutir a cena. Para os padrões de hoje a cena seria banal. Para o púdico cinema da época poderia parecer a alguns muito atrevida.

     Voltemos à barba. Não foi à primeira, mas foi à segunda. Passado pouco tempo, uma segunda tentativa foi bem-sucedida. Entretanto, fui convencendo alguns colegas da Sociedade Missionária que eles tinham mais razões do que eu para as ditas excrescências do rosto: missionário que se preze usa barbas respeitáveis. O pe. Carvalho, o agricultor lá da quinta, era um bom exemplo disso. Nunca tirei a limpo se este uso dos missionários derivava da busca de respeitabilidade ou da ausência de condições na selva. Mais tarde, tive uma razão suplementar para continuar a usar barba comprida. Numa ida ao barbeiro, cortei a barba. Cheguei a casa e, em vez de abrir a porta, toquei à campainha. A minha mulher veio abrir e não me reconheceu, pois nunca me tinha visto sem barbas. Nessa mesma tarde, tinha conselho pedagógico no liceu. O engraçado foi quando comecei a falar. Todos reconheceram a minha voz, mas o olhos cruzavam-se em todas as direções à minha procura e alguns nem me viram.

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     Num determinado momento, apareceu em Valadares um seminarista novo, uma vocação tardia, uma vedeta, uma estrela com um estilo e qualidade de vestuário que fazia a diferença. Frequentou direito e a meio do curso foi para as missões. Trazia no seu bilhete de apresentação a colaboração numa diocese de Moçambique que tinha um dos bispos progressistas da época. Inseriu-se nos trabalhos pastorais de elite. Entre mim e ele nunca houve simpatia mútua. Passados uns tempos, num belo dia, despareceu. Um silêncio ensurdecedor habitou as nossas perguntas. Rigorosamente, de momento, ninguém dizia nada sobre o assunto. Enchi-me de coragem e confrontei o Pe. Pinheiro com este pacto de silêncio entre os sacerdotes do seminário. Explicou-me que o referido seminarista era homossexual, tentou seduzir e forçar um colega que o denunciou. No dia seguinte, fez as malas. Este silêncio ainda hoje me incomoda, pois traz-me à memória o choque que tive no Gavião. O meu patrício António Manuel Catana não resistiu às saudades da mãe e quando esta passou pelo Gavião a caminho de Fátima para o 13 de Outubro, ele não resistiu e desatou a correr atrás do autocarro. Foi isolado, até ao regresso da peregrinação e nunca mais ninguém o viu. Ainda hoje, a recordação deste episódio me repugna e parece desumana. O silêncio só piora, em meu entender, a situação.

     A estadia no seminário da Boa Nova foi para o Pe. Pinheiro uma bênção. Era um homem culto e gostava de ler. Foi uma oportunidade de contactar com um ambiente culturalmente rico e, por outro lado, tinha muito tempo e bibliografia actualizada de teologia. A diversidade de dioceses (Portalegre, Aveiro e Lamego) e de ordens religiosas (Sociedade Missionária, Carmelitas, Beneditinos, Combonianos, Vicentinos, Capuchinhos) enriquecia a todos. Os professores eram recrutados das várias ordens religiosas e dioceses e os Dominicanos também forneciam 2 professores. Das dioceses só Aveiro tinha um professor num semestre. O Pe. Pinheiro nunca realizou um desejo secreto no ISET - ser professor de História da Igreja.

     Quando há dois anos visitei na Rússia o museu da vodka e me ensinaram como se bebia, lembrei-me do Pe. Pinheiro e dei uma grande gargalhada para dentro. Explicava a guia que era de uma só trago e de um golpe rápido. Recordei então um episódio em que a sua voz foi determinante. Estava acompanhado e entrámos na sala de televisão dos padres. Para onde se dirigiu a nossa curiosidade? Naturalmente para o bar. Entre as bebidas havia vodka. Enchemos os copos. Nisto, ouve-se a voz do Pe. Pinheiro a começar a subir as escadas. Foi mesmo de um só golpe e o mais rápido possível. Os calores e a fuga foram tais que a vacina ainda está com prazo de validade. Nem a celebração da prática correta, apesar da ignorância, venceu a memória da apanha de fogosos calores.

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     O Pe. Manuel Pinheiro era muito amigo do então pároco do Tramagal. Eu sabia que ele costumava vir ajudar o amigo durante a semana santa. Procurei-o, e convidei-o para vir almoçar a minha casa. Foi a última vez que conversámos. E longamente. Um almoço simples, mas amistoso e rico. Fiquei intrigado por ele não me ter perguntado por que não me havia ordenado. Também não toquei no assunto.

     Não soube do seu falecimento senão passado muito tempo. Partiu, mas como eu, estou certo, muitos beneficiaram com o facto de o ter conhecido e com ele ter convivido.

     Para estar de acordo com a pessoa que o Pe. Pinheiro era, ficaram as lições de humanidade, de simplicidade, de cultura e o saber estar atento ao outro, a humildade, a frontalidade, as suas gargalhadas e sorrisos abertos, o saber apreciar a vida e o gosto de viver. Dele digo o que lhe ouvi dizer de outro sacerdote: «um homem sem dolo». Gostei de caminhar e aprender com ele durante seis anos e estou-lhe grato pelo muito que me ensinou pelas palavras, mas sobretudo pelas atitudes.

Mário Pissarra

 

NOTA: A acompanhar este texto, o Mário endereça-me uma mensagem que eu publico como apelo a que outros colegas sigam o seu exemplo, como ele pede. A dignidade do homem também se mede pelo reconhecimento do muito que por nós fizeram. AH

 

«António
 
Como vais? E a tua família?
 
Como dizia o meu filho em criança: «o que é prometido é de vidro».
 
Peço-te encarecidamente que dês um pouco de atenção a este texto escrito apressadamente. Está à vontade para o corrigir em todos os sentidos do termo. Como amanhã não vou ter disponibilidade, tive de o antecipar... Creio que o Pe. Manuel Pinheiro e, naturalmente muitos outros, merecem a nossa gratidão e homenagem. Como é normal, cada um de nós tem os seus professores marcantes. As minhas reservas (na colaboração no livrinho que foi apresentado em Portalegre), como já te disse, foi não ter seguido o caminho que considero mais correcto: ninguém pode falar com propriedade de um professor de quem não foi aluno. Desde essa altura que este texto estava mentalmente escrito enquanto obrigação. Creio que outro professor de Portalegre nessa altura que merecia um testemunho era o Pe. Adelino Lourenço. Isto é para picar algum dos meus condiscípulos. Não sei se escreveram sobre o Bugalho, mas o Jana ou alguém do ano dele (José Pedro, Zé Maria?) eram pessoas para isso.
 
Um abraço e obrigado por todo o teu trabalho e empenhamento pela associação.
Mário Pissarra»

 

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