Homenagem ao Joaquim Alves Filipe 2
Há momentos em que as palavras nos deixam sem palavra! Obrigado, J. Silvério! AH
Meu caro António Henriques
Agradecendo a simpatia de me enviarem o texto de homenagem ao meu tio, ensaiei um pequeno texto, a que chamo "Recordações. Poema sem rima", que invoca os tempos dos verdes anos em que o "conheci".
Pedindo desculpa pela presunção de me armar no poeta que não sou, podem publicar este texto que, para mim, é a melhor homenagem que poderei prestar ao meu querido tio Joaquim Filipe.
Um abraço
joaquim silverio mateus
"Recordações. Poema sem rima
Recordo-me de fugir para os braços de minha mãe nas noites de trovoada e de ela me dizer que era Deus a ralhar;
E eu acreditava;
Recordo-me da lareira que iluminava as noites com o cheiro das pinhas e da madeira queimada;
A escuridão, lá fora, combatia-se com a luz fraca e trémula dos candeeiros de azeite e da lua cheia quando ela decidia aparecer;
E, pela noite dentro, nós rezávamos ou cantávamos canções e dávamos as boas noites aos avós;
E depois mergulhávamos nas mantas de fitos ao som da chuva e das árvores fustigadas pelo vento;
Ao nascer do dia, ainda sonâmbulos, seguíamos as indicações dos mais velhos contemplando o mundo;
E o mundo eram aqueles campos de milho, o ribeiro, os sapos e as rãs, os pinheiros sem fim e os galos que há muito tinham acordado o vale com os seus cantares desafiantes!
Em Junho íamos às cerejas;
Era da casa da avó Amélia que partia o ruidoso grupo de primos e primas, pais e mães um pouco atrás, em direcção à velha cerejeira que tinha florescido em cor e em sabor;
O tio Filipe organizava os jogos, os cantorios, as brincadeiras daquelas tardes de Junho que, pensava eu, nunca teriam fim!
Recordo as incursões à ribeira e de como invejava o miúdo que nadava até ao outro lado do poço, tão distante que era impossível chegar lá;
Recordo o cheiro do pão quente, da terra molhada e das castanhas braseadas nas longas noites de inverno;
Recordo os dias da feira de Agosto, dos bois, das panelas de barro e de ferro, das foices e das enxadas, do sabor das melancias, das montanhas de melancias à beira da estrada empoeirada;
Recordo aqueles homens e mulheres vestidos de preto com as mãos sujas e enrugadas pelas enxadas que trabalhavam a terra e os pesados cestos que traziam à cabeça;
Vivia-se com pouco, mas vivia-se com um sorriso e alguns sonhos;
Agora são apenas memórias distantes, esbatidas, impossíveis de repetir;
Resta este poema sem rima e a alegria de saber que tudo isto existiu.
Joaquim Silvério Mateus "