ESPERANÇA QUE DESESPERA?
Primeiro, a carta
Queridos amigos,
À moda já ida das cartas que outrora escrevíamos, espero e desejo que se encontrem bem e, sobretudo, que gozem de boa saúde. Àqueles a quem a saúde, por força do tempo e também de pequeninos vícios, for pregando partidas, desejo que a argúcia e o engenho da medicina, misturados com a dose certa dos cuidados exigidos a cada um e o amor e carinho dos que vos rodeiam, possam driblar as maleitas e assim viverem o que lhes é dado viver e sonharem o que ousarem sonhar.
Apesar do silêncio, é com enorme prazer, alegria e esperança que vou acompanhando o agora «Animus Semper». O deleite é ainda maior quando leio os textos, sejam eles notícias, memórias, mais reflexivos ou até mundanamente gastronómicos, mas onde encontro em todos eles a alegria da partilha, do (re) encontro e do convívio, do simples desfrutar da presença do outro, do transmitir de algo que outros nos ensinaram, do saborear o que também com outros aprendemos a saborear... Enfim, o desejo de construir novos laços e de cuidar de outros já edificados no desejo – ou na esperança – de que nunca seremos abandonados, de que nunca estaremos sós.
A todos um grande abraço deste centeio que apenas tenta ser feliz em seara de gente.
Depois, a reflexão
(No meio do silêncio e da solidão com que este blogue se vai cosendo, estas colaborações-surpresas enchem-nos de uma força enorme. Obrigado, Zé Centeio, por iluminares de alegria, apoio e esperança o nosso caminhar, trazendo comunhão e nova reflexão ao que aqui vai surgindo, desta vez com o António Manuel Silva). AH
A ESPERANÇA QUE DESESPERA...
“Quem planta tamareiras, não colhe tâmaras!”
(provérbio árabe)
Reza a lenda que certa vez um homem, já de provecta idade, se entretinha a plantar tamareiras no deserto quando um jovem o abordou perguntando:
- Mas por que o senhor perde tempo plantando o que não vai colher?
O homem, na sua imensa sabedoria, virou a cabeça e calmamente respondeu:
- Se todos pensassem como tu, ninguém colheria ou comeria tâmaras.
Importa acrescentar que as tamareiras, sem as atuais técnicas modernas de produção, levavam entre 80 a 100 anos até se poderem saborear os primeiros frutos.
Ao ler o texto do Tó Manuel, veio-me à memória este ditado e eu, que me havia arredado destas andanças escribas, vi-me desafiado – interpelado – pela sua reflexão a contribuir também um pouco, mesmo se com vulgaridades, para essa construção de memória coletiva de uma esperança desesperada de tanto esperar. Que o futuro não nos pertence, mas que depende certamente de nós, é frase que me acompanha e que repito com frequência, sobretudo quando em presença de audiências bem mais jovens que, no seu desespero, me dizem não valer a pena lutar porque nada muda. Embora a desesperança ou o desespero (estado onde foram quebrados todos os laços passíveis de reconstrução da esperança) me pareça sempre conter alguma ingratidão por aqueles que nos precederam, tento sempre desafiar essas audiências para a reconstrução de uma memória sem a qual não é possível compreender o presente e, ainda menos, construir o futuro. Imagino que o Tó Manel, enquanto historiador, tenha sobre isto uma outra consciência e um olhar bem mais profundo que aquele que nestas linhas transparece. Percebermos e sentirmo-nos devedores de outros que nos antecederam, compreender o legado que nos deixaram, estejamos ou não de acordo, seja ele o melhor ou o pior de uma geração, permite-nos entender o presente e ganhar consciência do nosso papel na transformação desse mesmo presente, ou seja, no desenho do futuro coletivo. Legado que a outros deixaremos. Se hoje, apesar das muitas dificuldades, desfrutamos de muita coisa, a outros o devemos e, não raras vezes, a muitas vidas.
A globalização e a ausência de referenciais (tal como na Física também na vivência quotidiana necessitamos de referenciais em relação aos quais nos situamos), aliadas a uma certa cultura onde o individualismo e o sentimento de posse são marcantes na forma como nos relacionamos com o mundo e com o outro, criaram um vazio que levará tempo a preencher e que não se fará sem convulsões. A posse, ou seja, o poder que exercemos sobre o que não nos pertence é estruturante da forma como se entendeu o progresso e a consequente exploração intensiva dos recursos naturais. A consciência de que nada nos pertence e que somos apenas herdeiros de um legado – natural, social e cultural – que, embora usufruindo dele, temos o dever de cuidar e deixar a outros, é algo que está ainda bem longe das nossas cogitações.
Este sentimento de posse radica também na ilusão antropocêntrica entre o nosso tempo (o que nos é dado viver) e o tempo histórico (período societal abarcando as causas, as transformações e os efeitos) e, ainda, o tempo do mundo (o tempo da criação e transformação natural do mundo que nos rodeia). Criamos a ilusão de que o tempo que nos é dado viver, sendo curto face ao tempo histórico e ínfimo perante o tempo do mundo, é relevante e único e que, por isso, nos dá o direito de posse. A tudo isto acresce ainda uma leitura da realidade muito eurocêntrica, ou ocidentalizada, ignorando que esta civilização é velha apenas de 3 séculos (após o iluminismo) e que outras houve antes desta com a mesma pujança, saber e valores marcantes no seu tempo e que, por razões diversas, entraram em decadência abrindo espaço a outras emergentes. Os movimentos migratórios inserem-se também nestas dinâmicas de readaptação e de reequilíbrio das sociedades na procura de uma nova ordem, seja ela qual for.
A contestação atual e global, como refere o Tó Manuel, é órfão de referências com a agravante de não garantia, no curto prazo, que dela advenham benefícios e sem se saber ao certo o que contestar. Recordemos que, apesar de nunca ter existido tanta riqueza a nível mundial, metade dessa riqueza está nas mãos de 1% da população e que dos outros 50%, apenas 5,5% estão nas mãos da grande maioria da população. Pior ainda, grande parte dessa riqueza é de natureza especulativa não correspondendo a bens efetivamente produzidos. Em 2013, os fundos de investimento e os fundos de pensões representavam cerca de 75,5% do PIB mundial, sendo crescente a tendência da sua concentração. Quando se fala em mercados é também disto que falamos. Por isso, a palavra crise assusta tanto e há quem preveja que as suas consequências serão cada vez mais devastadoras e penalizantes para os povos (pessoas). Se a isto acrescentarmos o negócio das armas e dos estupefacientes, as duas áreas de negócio que a seguir à especulação mais dinheiro movimentam, damo-nos conta de que o mundo em que vivemos é verdadeiramente explosivo. E pode acontecer a qualquer momento.
Serão estas razões suficientes para a não esperança, para a desesperança? É verdade que todas as evidências parecem apontar nesse sentido, mas creio que no meio da contestação, mesmo se algo anárquica, uma nova consciência vai despontando e será a partir dela que se erigirá uma nova esperança coletiva. É certamente uma caminhada longa, feita de avanços e recuos, de sofrimento, de desespero, de equívocos, mas onde a humanidade saberá encontrar, nessa travessia do deserto, o caminho da terra prometida.
Tal como na parábola do plantador de tamareiras e como escreve o Tó Manuel citando Bruno BETTELHEIM, cabe aos mais velhos indicarem o caminho (“Traçarem o rumo”) – plantarem as tamareiras – para que os mais novos reconheçam o esforço, saboreiem e cuidem do legado e, simultaneamente, possam transformá-lo já que são eles o futuro.
Pessoalmente, sempre me considerei uma pessoa de esperança, já que, sendo cristão, a minha vida não teria sentido sem que ela me acompanhasse. É uma esperança que radica na ressurreição e na certeza que também um dia, a caminho de Emaús, seremos reconhecidos pelos gestos, ou, numa versão mais prosaica, pelo que fomos e construímos e pela nossa capacidade de envolvermos outros nessa construção. E não apenas pelo que desejaríamos ter sido enquanto indivíduos, afastando de nós esse último cálice que é a experiência da cruz.
Tal como a Caim também um dia nos (me) será perguntado o que é feito do nosso (meu) irmão.
Tentem ser felizes em seara de gente.
José Centeio