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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

Capitel

06.06.21 | asal

 Retorno às Origens na Festa do Corpo de Deus

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 Tirada a fotografia dos vastos campos de Castelo Branco, lá em cima na Colina do Castelo, que, em estação primaveril, compõem um sugestivo tapete de verdura e claridade, permitindo lobrigar os cumes da Estrela, Gardunha e Moradal, lá fomos buscar a minha irmã, viúva, que sofre daquela gélida solidão que atinge, sem piedade, as pessoas da 3ª idade.

 Voltámos à cidade pela Estrada Nacional nº18, para a Missa do Corpo de Deus na Sé Catedral.

  Há quantos anos não passava por ali! A altura do mato das bordas e declives impediu-me de ver o “couto” que à família outrora pertenceu. Ainda ouço, à distância do tempo, a voz bem timbrada do meu pai a incitar as vacas na tarefa do lavrar da terra. Cada uma tinha um nome lindo e bem sonante, que já esqueci. Daí a meses, uma bela seara de trigo ondularia ao vento, como as tranças de uma loura rapariga! Não trovejasse, e a divina Ceres dar-nos-ia pão com fartura, misturado com centeio, claro! E o eu-menino cabriolava com os cães da Serra, tão pachorrentos com as crianças quanto ferozes com os lobos, que desciam da serra, famintos, esfacelando, de uma vez só, trinta e tal ovelhas do alavão. Uma desgraça, regada com pragas, lágrimas e gritos!  Mas quantas vezes aqueles cães de guarda a repetição do massacre evitaram!

 Agora, até o Cabeço do Carvão, altaneiro e misterioso, morada eterna de uma linda Moura Encantada, filha do maioral árabe de Alcains, terra de noras e picotas, que rima com a castelhana Alcanizes, e não tanto com as vozes ultrajantes dos que por lá passim, agora até este penhasco aparece espalmado, quase ao nível da estrada. E que é feito do Poço que, tantas vezes, a sede me matara, nas idas e vindas do eu-adolescente, palmilhando 11 Km para depositar no regaço do meu confessor a carga insuportável dos pecados?

   Há tantos anos que não entrava na Sé!   Noutro tempo, quase a confundira com uma Igreja normal!  Hoje, porém, olhei-a com atenção e carinho, cativado pele nobreza clássica da sua fachada, um monumento de pedra bem talhada, silharia perfeita, brilhando com o seu frontão incompleto, encimado por uma cruz singela, que marca um eixo vertical (axis mundi) onde simetricamente se colocou a rosácea com um vitral, ilustrado com a divina Pomba, no meio de um círculo desenhada. Descendo um pouco na mesma linha, um nicho com São Miguel esculpido, ali encastrado, sendo que a porta principal se abre ao nível do chão, ladeada por outras duas portas, a que duas janelas com remates de estilo rococó, com varandins de ferro forjado, nobremente se sobrepõem. Lisura, transparência, espaço aberto, reflectindo a doce luz da tarde ou as fulgurâncias do Sol do Meio-Dia.   E note-se a simetria dos dois lados da parede central, rasgadas por cinco aberturas que se prolongam, em harmoniosa esquadria, pelas duas torres discretas sobre as quais pousa uma leve cúpula com duas hastes de pedra, apontando para o céu.

 Saramago, quando por aqui passou, escarneceu (só pode!):  O viajante fica apalermado “com a inexpressiva fachada que lhe deram.” (Inexpressiva, o tanas!) E agora eu, (um canhestro amador de arte) leio num guia do Turismo esta nota histórica: “Já no séc. XIII (1289) é referenciada, neste local, uma igreja dedicada a S. Miguel, como propriedade atribuída aos Templários. (…) Na construção que chega aos nossos dias, prevalece o estilo Barroco. “Com laivos de Rococó, diria eu! E outro, no Guia do Expresso: “A Sé foi edificada sobre uma simples igreja, a de S. Miguel. Que era Colegiada da Ordem de Cristo.”

  No seu interior, a mesma impressão de despojamento, privilegiando-se claramente as linhas sóbrias e puras, em detrimento da exuberância barroca que tinha, como é sabido, horror ao vazio. Na sua traça eminentemente horizontal, à medida do homem, na arquitrave do transepto, escavou-se um nicho, enquadrado por um frontão clássico, onde nos espreita, solícita, a imagem de S. Miguel, em contraponto com a pintura mural da ábside detrás do altar-mor, que ostenta o Arcanjo guerreiro, vencedor de Lúcifer no combate primordial do Bem contra a soberba do Mal.  O que, porém, mais nos surpreende é a posição e atitude do Santo Arcanjo: na parte inferior do mural, quase ao nosso nível, olha para nós, oferecendo-nos os seus préstimos, a nós, que, pelas veredas e extravios da vida, caminhamos, sempre carecidos da sua companhia.

 Outros elementos, estes de inspiração barroca, por ali se disseminam, com justa medida e sobriedade: as colunas torcidas, salomónicas, em talha dourada, volutas incompletas, capitéis das ordens jónica e dórica.  E a abóbada, um primor de luz, descarregando o seu peso nas paredes, espessas e robustas, cobrindo toda a nave, revestida por cinturas do que me pareceu de mármore-rosa alternando com faixas de mármore –verde. (Escrevo de memória, sem o apoio de uma foto. Se alguém tiver a bondade de me corrigir, por favor…) Quatro ou cinco janelas rasgadas nas paredes mais a rosácea afirmam-se como pontos de entrada de luz. Na abóbada do Presbitério, por cima do altar-mor, vê-se o escudo das cinco quinas com a coroa real, remetendo para a aparição de Cristo Crucificado, com as suas chagas sangrentas, a D. Afonso Henriques, na véspera da Batalha de Ourique (24 de Julho de 1139) onde terá profetizado a sua vitória sobre os três reis mouros, prelúdio necessário para a sua aclamação como Rei de Portugal. Não desvalorizemos as lendas por excesso de racionalismo. Elas são formas “simples” da expressão do imaginário popular (André Jollles) constituindo-se na matriz das epopeias dos povos.  Pessoa escreveu a respeito das quinas: “Baste a quem baste o que basta/ O bastante de lhe bastar! “Basta-nos o texto oral da lenda fundadora da nacionalidade, embebida no Sangue Redentor de Cristo!

 Com efeito, este elemento heráldico liga-nos teologicamente ao mistério eucarístico do Corpo de Cristo que o Pe. Nuno Folgado, Pároco da Sé, tão brilhantemente abordou, recorrendo à função performativa das palavras da Consagração. “Há palavras que fazem acontecer realidades novas, actos, eventos, instituições.” Estamos no domínio da Pragmática Linguística, de que J.L. Austin, com o seu livro “ How to do Things with Words! (1962” foi um dos pioneiros.  Ditas por um sujeito revestido com a devida autoridade em determinados contextos rituais ou institucionais, as palavras realizam o que significam. Daí os actos declarativos da linguagem que não se limitam a representar a realidade, mas, dada a sua força ilocutória, instauram uma nova realidade. “Eu te batizo…” Declaro-vos Marido e Mulher…”  E o Pe Nuno continuava:  O enunciado dito por Jesus, no contexto da Ceia Pascal Cristã (não judaica) “Isto é o Meu Corpo entregue por vós” constitui uma expressão performativa que realiza o milagre sublime da transubstanciação. O mesmo sobre o Vinho: “Isto é o meu sangue da aliança, que vai ser derramado por todos”. Estreita e profética é a conexão com a Paixão e Ressurreição de Jesus.

    Claro que esta é apenas uma abordagem do Mistério e que está muito longe da sua compreensão humana total. Sem o dom da Fé, que nos é dada pelos méritos da Redenção de Cristo, a nossa inteligência não avança, o fluxo do pensamento estanca, gagueja… diante do que a tantos parece uma aporia, ou coisa incompreensível e até escandalosa, como na reação dos ouvintes perante o discurso de Jesus sobre o Pão da Vida. Por mim, vi pela 1º vez este tipo de abordagem, usada pelo Pe Nuno, que gostaria se juntasse ao nosso grupo, no livro História e Mistério (2000) do grande Mestre Carreira das Neves. (pp. 95-99; 229-232)

 E acabo, dando Graças a Deus pela Santa Eucaristia neste dia de uma Festa tão enraizada na história da nossa consciência cristã ao longo do tempo. E ali, na Sé de Castelo Branco, celebrada com tanta sobriedade, a condizer com todo o monumento de pedra luminosa, um poema sacro de harmonia em louvor do Amor de Deus que, em última instância, move a humanidade, o universo e as estrelas.

João Lopes, Coimbra, 4 de Junho de 2021

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NB - Foto de "Reconquista"

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