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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

Cântico dos cânticos - 2

09.05.22 | asal

Meu Caro António Henriques, amanhã, o meu computador vai estar ocupado com aulas à distância. Aproveito hoje para te enviar o meu texto. Um pouco extenso, peço desculpa, mas a sua unidade de tratamento assim o exige. Se algum dos leitores quiser colocar alguma objeção ou fazer uma crítica, não há problema. Responderei como puder. 

 Mandei duas fotos para ilustrar um texto tão  representado na azulejaria e na pintura, Marc Chagal fez belas ilustrações do Cântico,  como Bernini  no êxtase de Santa Teresa de Àvila. 
 O saudoso P. Carreira das Neves,  no seu pequeno grande livro," Ler a Bíblia no  Século XXI", diz ser um livro excelente para a preparação do casamento. E não só, aconselha-o para todas as idades do amor, mesmo para o amor bem velhinho de tantos de nós.
Um grande abraço agradecido, João                            A 1. parte foi publicada em 3/05 (veja aqui).
 

    2ª Parte e conclusão

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    “ Volta-te, volta-te, Sulamita! 

       Volta-te, volta-te, para te vermos!" (7,1) 

  1. O Cântico dos Cânticos e a Virgem Maria

    Não custa admitir que o Cântico tenha sido aplicado, de forma eminente, à Virgem Maria. Algumas referências do poema a Maria têm sido feitas desde o séc. IV na Liturgia e nos Sermões, sendo que é no séc. XII que, em chave alegórica, se desenvolve a interpretação mariana deste poema de amor, grandioso e resistente, a um tempo lírico e épico.

  Em três passagens se fundamenta esta releitura:  Vv. 4,7;  6,4 e 6, 10.

   “ Toda bela és tu, ó minha amada, / e em ti defeito não há. ( 4,7)

    Este verso faz parte do 1º elogio da formosura da amada, num discurso superlativo ao jeito da retórica oriental, um colar de metáforas e comparações, de singular beleza.

   A propósito do verso citado, a Santa Bíblia de Jerusalém esclarece: “ a Liturgia Católica aplica este verso à Imaculada Conceição.” E ao fazê-lo, a hermenêutica cristã alarga o âmbito da sua significação para o momento da conceção de Maria, pura e incontaminada pela mancha do pecado, em atenção à Incarnação do Filho de Deus.

 Obviamente, a intenção original do poeta final do séc. V a. C. não vai tão longe. E nós também, com um simples olhar, não compreendemos o alcance desta “ referência” que, mesmo em registo alegórico e acomodatício, nos coloca no limiar do Mistério.

 Por mim, não desligo este verso do contexto verbal em que se insere. Na verdade, todas as qualidades cantadas podem ornar o retrato de Maria: o falar doce e encantador (v. 4, 3); as faces de romã, (4, 3); a fragrância dos perfumes ( 4, 10), a altivez e frontalidade da “ torre de David,” resplandecente de troféus de vitória ( 4, 4).  Em 6,4. no 2º elogio, “ Tu és bela, minha  amada, como Tirça; / esplêndida como Jerusalém. / És terrível como as coisas grandiosas.” De novo, a sugestão da fortaleza inexpugnável que ressalta na tradução latina: “terribilis ut castrorum acies ordinata”.

    Toda esta cornucópia de predicados e excelências físicas e morais podem, com toda a verosimilhança, passar da beleza da heroína do Cântico, uma epopeia de amor de fidelidade e resistência, do séc. V. a.C. para Maria, casada com um construtor do séc.I ( tekton) e que, naturalmente, gostava de se apresentar com todos os adereços  de beleza de uma mulher oriental do povo ou da classe média.

 Quanto à sua resistência física, só uma jovem, com perfil de atleta, seria capaz de vencer, por altas montanhas, uma distância de Nazaré a Ain-Karim,  a 6km a sul de Jerusalém. Divulga-se por aí uma imagem de fragilidade e delicadeza que em nada condiz com a mulher forte do Apocalipse e com o seu papel de matriarca, atarefada em trabalhar para o seu clã familiar de Nazaré, um clã davídico, como nos explica o abade Pixner nos seus escritos sobre o Quinto Evangelho. Ou a paisagem  e geografia das terras percorridas por Jesus. Por isso, tanto aprecio a estátua de Maria com o Menino, ao lado do altar-mor da Basílica de S. Pedro!

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 Humanizemos, pois, a imagem desta grande Mulher, Senhora e Mãe carinhosa, que tanto se preocupa com esta tropa de filhos, rebeldes e zaragateiros “ A mulher que em tudo se mete” como a define soberbamente o dramaturgo brasileiro Ariano Suassuna, no seu Auto da Compadecida. E, apesar de tantas preocupações, em nada perde do brilho da beleza e dedicação, como ressoa no elogio coletivo das mulheres de Jerusalém. “Quem é essa que desponta como a aurora, /bela como a Lua, / fulgurante como o Sol,/ terrível como as coisas grandiosas?” ( 6, 10) 

  1. O caráter antológico do livro, género literário e contexto

    A Bíblia apresenta-nos um Poema composto de 8 cps, dotado de alguma unidade literária e coesão textual.  Porém, os exegetas identificaram 5 a 20 pequenos cantos, que, antes da sua compilação, haviam gozado de alguma autonomia no florescente folclore de Israel. Seriam cantados nas reuniões das tribos, nas festas e nos casamentos. Nos costumes orientais, celebrava-se a festa do casamento em sete dias festivos. O núcleo central é constituído pela coroação dos esposos. Num dos dias, os convidados entoavam cantos vários em honra dos noivos que, sentados num trono, eram elogiados com epítetos reais de “príncipe e princesa".

    Quanto ao género literário, trata-se naturalmente de poesia lírica, estruturada segundo o modelo estilístico e teatral de um epitalâmio, como nos esclarece T. Mendonça na Introdução j da ed. da Bíblia da Difusora Bíblica.

     No séc. V, Neemias, um regressado do cativeiro e nomeado pela corte persa como governador da província da Judeia, vendo a cidade profanada por povos estrangeiros, empreendeu uma reforma dos costumes, tendendo a defender o casamento monogâmico entre os judeus puros, que haviam feito a experiência do exílio.

  É neste contexto sociológico que um grupo de poetas de ofício, de alto gabarito, homens e mulheres, decidiram reunir esses cantos soltos, fragmentos amorosos, transmitidos pela tradição oral e colectiva, e, inventando uma linguagem rica, sensorial e sugestiva, subtil e requintada, empreenderam um trabalho de construção verbal de alto nível poético, em que as palavras, cuidadosamente escolhidas e combinadas, pela ressonância que entre si produzem, formam também uma espécie de música de fundo de todo o Cântico. Poesia, música e dança, três artes em sintonia!

   Uma obra de excelência de um ou uma poeta desconhecidos. Desse trabalho minucioso sobre a textura verbal, que implicou também um trabalho de colagem dos tais cantos menores, resultou o Cântico dos Cânticos, uma forma semita de traduzir o superlativo relativo de superioridade, isto é o Cântico mais perfeito para celebrar o amor entre um homem e uma mulher. Os refrães que se repetem, servem de elos de ligação.

  1. Estrutura textual e unidade literária
  1. Título e prólogo

   Os hagiógrafos atribuem a autoria do Poema a Salomão (séc. X, 972-931 a. C.), expoente máximo  da sabedoria em todo o Israel  e povos vizinhos. Não é que o afamado Rei seja o seu autor, mas, ao colocar o Poema sob a autoridade real, (pseudo-epigrafia, muito usada na Bíblia) havia a intenção de  garantir  a aceitação de uma obra cujos verdadeiros autores se desconheciam.

 A mulher, personagem de 1º plano, vinda de um lugar desconhecido, do deserto, terra de sede e solidão, irrompe pelo texto, ex abrupto, repentina e desesperadamente, ao amado solicitando beijos, muitos beijos, que lhe matem a sede de amor. Há que afastar as concorrentes. Por isso, arranca-o dali  para, numa corrida infrene, alcançarem o bosque das delícias.

  1. Desenvolvimento
  • 1º Poema, 1,5-2,7: BUSCA E GALANTEIO

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           Podem detectar-se, pelo menos, cinco quadros ou cenas, no desenrolar de um diálogo apaixonado entre um par amoroso, simples e anónimo, impregnado de um lirismo bucólico e pastoril, que se expande em movimentos de fuga e aproximação entre “ELA” e “ELE”. Talvez mais do que encenar ou” representar”, ou também isso, dado o potencial teatral do Poema, como observou E. Renan, interessa-lhes viver, sinceramente, a paixão que os consome, num cenário que varia entre o deserto de Judeia e o oásis de En-Guédi, a oeste do Mar Morto.  (Lembro-me bem: ao passar por ali, vi uma imponente cascata vinda deste oásis fecundo!)

  Ela começa por se apresentar à comunidade. “ Sou morena, mas formosa, ó filhas de Jerusalém” Na alta sociedade, valorizava-se a cor branca, sinal de nobreza. Perante o preconceito de cor, não se acanha, justificando-se com a sua condição de camponesa:   “Não estranheis eu ser morena: foi o sol que me queimou.”

 (Onde é que já ouvimos isto no Cancioneiro da Beira?)

  • 2º Poema: 2,8-3-5: PRIMAVERA E SONHOS DE AMOR

E desabrocha a 1ª declaração de amor: “ O meu amado é para mim e eu para ele” v. 16

 Ou seja: ela deseja o desejo dele e ele deseja o desejo dela. A constelação semântica das palavras que gravitam em torno do “Desejo”, o pivot temático do discurso, são inúmeras e repetidas: “ desejar” 2,3; “beijar” 1,2; 8,1)  “abraçar” 2,6; 8,3; “ roubar o coração”4,9;  “ desejo e prazer” 7,7; desejável e apetecível, 7,7)

 Diante da realidade do amor, não há conflitos morais. Apenas a ambivalência da paixão, tecida de contenção/ satisfação, ausência/ presença, perda e reencontro, fala e silêncio, imobilidade e ação.

 Apalpa-se o avanço progressivo do discurso até explodir no clímax dos versos 4,16-5,2.

  • 2.3 3º Poema 3, 6- 5,2 : BUSCA NOTURNA, ANSIEDADE E ENCONTRO

   Ela: “ Levanta-te, vento norte (…) Vem soprar no meu jardim (metáfora do corpo)

  O meu amado entrará no seu jardim/ e comerá os seus frutos deliciosos”.4,16

      Promessa ou anúncio que ele cumpre, sem  mais delongas: “Entrei no meu jardim, minha irmã e minha noiva. (…) Colhi do meu favo de mel/ bebi o meu vinho e o meu leite”

    Tratar a amada como irmã é comum na poesia oriental. É uma forma de realçar os laços de ternura e convívio que traz a coabitação desde a infância.

 Na textura simbólica e poética dos elementos comestíveis, mel, vinho, leite ou maçãs e figos, recorrentes na literatura egípcia e em toda a imagética mediterrânica da Bíblia, reafirma-se a intenção autoral de exaltar o amor feliz, a sexualidade saudável, embelezada pela fidelidade, unicidade, exclusividade e respeito mútuo que, de forma singular e bem marcante, adornam a expressão erótica do discurso.

  •  2.4 4º Poema:  5,2-6,9  FUGA E ENCONTRO DO AMADO

          A REVELAÇÂO DA BELEZA MASCULINA

  O retrato do amado, único retrato desenhado por ela, além de um ou outro apontamento, responde à curiosidade do coro das filhas de Jerusalém. O corpo do amado, percorrido de alto a baixo pelo seu olhar, naturalmente interessado e envolvido, distingue-o entre dez mil, pela tez rosada do rosto, pela farta cabeleira, negra como as asas de um corvo, olhos de pomba, reflectidos num lago de leite – enfim, um quadro perfeito pintado com as tintas da terra, da bela terra de Israel. Antes, já ele se autocaraterizara como um narciso de Sharon , a planície  da costa do Mediterrâneo e um lírio do vale.  Há quem veja, em parte do retrato, uma comparação do corpo do jovem com o Templo, o monumento mais precioso de Jerusalém, o centro luminoso da presença divina. E, assim, indiretamente,   se insinua a imagem  do Autor da vida e do amor.

  • 2.5. 5º Poema  : 6,4- 8,4  :   UNICIDADE E INTEGRIDADE DO AMOR

     Mais dois retratos da beleza da amada, numa sequência quase contínua:  6,4 -6-10 e 7,1-7,10

  Canta-se a unicidade da relação amorosa, em contraponto com a poligamia salomónica que levou o Reino à ruína. (1Rs, 11)

  “ Mas ela é única, minha pomba, minha perfeita… 6,9

 De facto, ela é única, inteira e completa; indestrutível é o seu amor como Tirça e Jerusalém, as duas capitais da Samaria e da Judeia, capaz de saciar plenamente o desejo de um homem e de o cativar no vigor dos seus braços. ( 7. 6-8) Por isso, avisado não seria  trocá-la por outra.

  Emerge aqui a lembrança da Sulamita, a jovem mais bonita de Israel ( 1Rs 2, 17-20) escolhida para suavizar as agruras da velhice de David e , com passos de dança e carinhos, o entretinha. Então, a amada, qual Sulamita, ensaia aqui uma dança oriental, mostrando habilidade, talento e capacidade de sedução. 

   Com um olhar latejante de desejo, o amante despe-a, de baixo para cima, dos pés aos cabelos de púrpura. A elegância do andar, o bamboleio das ancas e outras intimidades como a tacinha do umbigo e o monte de Vénus exibem-se com a mesma candura e naturalidade de quem cheira uma flor ou tira água da fonte. Um quadro realista de uma nudez, mais imaginada do que exposta, com uma floresta de palmeiras ao fundo.

       Perante elogio tão arrebatado, a nossa “Sulamita”  responde com um verso emblemático sobre a dignidade  da mulher:  “Eu pertenço ao meu amado e o seu desejo impele-o para mim”  (7,11) Muitos exegetas vêem aqui  uma resposta a Gn. 3,16, em que a atração sexual se realiza num movimento contrário. “ Procurarás apaixonadamente o teu marido, mas ele te dominará” ameaça Javé, dirigindo-se à mulher.  Ora, no Cântico, é o homem que não resiste ao poder de sedução que sobre ele exerce a mulher que ama. E nesta pertença mútua se restabelece a equidade, a paridade e a simetria na relação. Ou seja, no plano do amor, a mulher recupera a dignidade que a sociedade lhe sonegava. Pelo menos, neste Poema, as coisas passam-se assim. Basta ler as palavras no sentido imediato e natural.

      3.DESENLACE (8. 5-7) O MISTÉRIO DO AMOR

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Esclarece-nos o autor da BÍBLIA PASTORAL, ilustrada por Gustave Doré, que o epílogo ou desenlace é o cume do livro. “O amor é mistério insondável e indestrutível que une duas pessoas, superando mesmo a barreira da morte.” Daí a metáfora do selo, conotando uma amor eterno e fiel. “ Grava-me como um selo em teu coração, como selo no teu braço. “ 8,6 Imagem da amada, tatuada para sempre no corpo do amado?

 Não encontro palavras mais apropriadas para pôr um termo provisório a este estudo que as palavras de S. Bernardo, quer optemos pela leitura natural ou alegórica ou por ambas. “Se quisermos atingir uma compreensão do que no Cântico se pode ler, é preciso amar.  Senão, será em vão que se escuta ou lê este poema de amor; sem amor não se chega a parte nenhuma; um coração frio nada captará destas palavras de fogo.”(  Sermão 79)

  1. Intertextualidade com a poesia oriental

    Incompleta ficaria esta leitura, onde cinco poemas curtos e soltos se constituíram em quadros de uma composição final, de caráter antológico, ( e aqui, ligeiramente analisados)  incompleta ficaria se não referisse, mesmo ao de leve,  as  relações  com outros cânticos amorosos e  epitalâmicos do Egito e do Próximo Médio Oriente.

 Diz ELE: Amada, és única, de ti não se fez duplicado. (…)/ Os teus lábios são encantamento./ O teu pescoço tem o tamanho certo / E os seios uma maravilha.” (…) Os teus braços de mais esplendor que o oiro… (  Poemas de amor do antigo Egito. Ed, Assírio Alvim , p.15.

 Diz ELA: A tua voz perturba o meu coração, / Por tua culpa é que eu sofro.

  Ou este:   “Diz ela: Tens sede? / Toma o meu seio, / Exuberante. / O teu amor infiltra-se no meu corpo, / Tal como o vinho se infiltra na água… ( p. 31)

     “A única, a amada, a incomparável/ a mais bela do mundo, / olha-a bem, é como uma estrela brilhante/ no limiar de uma ano novo! (…) De graça cintilante e tez fulgente/ ela possui olhos de brilho incandescente. (…)  O seu ar é altivo  ao caminhar./  Ela prende-me o coração em seu andar".  ( Anne Pelletier, ib, p.13) 

     A especialista em Estudos Bíblicos realça os paralelos entre estes poemas de amor e admiração e o Cântico dos Cânticos. No fundo, pertencem todos à mesma área cultural. A vida simples e alegre da pastorícia, o trabalho na vinha ou no pomar, ou até o ambiente da corte, é fonte de imagens poéticas, parábolas ou metáforas, usadas, com mais ou menos requinte, na literatura profana (ou sagrada) sobre o amor humano, comum aos povos vizinhos da Palestina.

  João Lopes, Maio, mês de rosas e de Maria.