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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

Badalo comprido

19.02.19 | asal

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A semana passada fui à Idanha visitar a minha mãe que, nos seus 98 anos ainda, por vezes, mantém uma conversa interessante. Num desses momentos, falando com algumas visitas de ocasião, disse a alguém: «tu não querias que dissessem que deste ao badalo ou que tens o badalo comprido!»
Há muito que não ouvia esta expressão tão frequente e comum na conversa do mulherio da Idanha. Os badalos mais conhecidos da Idanha eram os dos sinos da torre. Até havia história sobre um badalo assassino que ao soltar-se, caiu no adro da igreja e ao saltar bateu na cabeça de um homem, tendo este morte imediata. Era uma história muito pouco consistente, pois faltava um sino na torre cuja história nunca deslindei. A torre da matriz da Idanha, como a dos Escalos de Cima, tem uma particularidade: está separada do corpo da Igreja.
Eram estes badalos que comandavam a vida social da vila. O toque das avé Marias, pela manhã, convidavam a rezar; o toque da missa anunciava que a celebração iniciar-se-ia daí a meia hora; o toque das Trindades, ao entardecer, coincidia com o regresso dos trabalhos agrícolas. Estes toques correspondem à liturgia das horas. Além destes toques diários, havia o toque de batizado, de finados, de funeral, das procissões, de aleluia, a fogo e a rebate. Aos domingos, o toque a chamar para a missa começava mais cedo e havia três chamadas. O toque era o mesmo, mas terminava com 3, 2 e 1 badalada para indicar o começo da missa do meio-dia. As pessoas perguntavam qual era a chamada, pois só a última era ordem de se arranjar. Sobretudo as «catchopas» casadoiras, pois os rapazes já as esperavam no cais e na praça, de sapatos engraxados, para participarem, sobretudo, no santo sacrifício da entrada e da saída.
Uma curiosidade: as pessoas da Idanha sabiam pelo sino a classe social de quem morria. Havia o toque dos ricos e o toque dos pobres. O sacristão encarregava-se do toque dos pobres. O toque dos ricos exigia dois homens experientes na manobra e só eles podia pagar a jorna a duas ou três pessoas. Quer a anunciar a morte quer durante o enterro, o sino ia ganhando balanço até dar a volta. Ficava na posição inversa e a espaços era largado e seguro nessa posição. Era o único toque que era feito apenas com um sino. O sino dobrava, diziam as pessoas. Todos os outros eram feitos pelos três sinos.
Há dias, alguém me contou que o filho do ti Manel sacristão, ao voltar de Lisboa e numa estadia pela vila, cheio de saudades do que havia aprendido com o pai, pediu ao pároco para o deixar tocar os sinos. Foi o espanto geral. Os mais novos nunca tinham ouvido tais toques e os mais velhos, espantados e contentes, perguntavam: «quem está a tocar?»
Dos badalos das mulheres linguarudas e de badalo comprido da Idanha não irei dizer nada. Por três razões: primeira, para não poderem concluir que há pelo menos um idanhense com a língua tão ou mais comprida que algumas mulheres da vila; segundo, como já saí da Idanha há cinquenta e oito anos, os badalos compridos que conheci ou já se calaram ou estão ressequidos e nós vivemos no tempo das notícias na hora; terceiro, não posso correr o risco de faltar à verdade. As visitas de médico que faço à Idanha não me permitem sequer saber se ainda hoje existem longos badalos compridos na vila e, no caso de os haver, se ainda funcionam.

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Para mim, voltar à Idanha é ser arrastado por uma enxurrada de recordações de vivências infantis e das férias da adolescência. Ainda hoje, os espaços cuja geografia melhor conheço estão na Idanha. Mas, como as histórias são como as cerejas, não resisto a contar uma ocorrência na aula de química da minha filha.

Uma dada matéria de estudo terminou a meio de uma aula. A professora resolveu não entrar na nova unidade didáctica. Os alunos sentiram-se mais à vontade e começaram a falar alto e com comportamentos pouco adequados. A professora irrita-se, perde o controlo da situação e grita: «ou se calam já, ou começa já a dar gases!»
Fez-se silêncio. Um aluno sempre bem-disposto e de humor refinado, levanta-se e exclama: «oh professora, por favor, por favor, não faça isso!
A professora não foi das primeiras pessoas a perceber o alcance do pedido.
Mário Pissarra

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