MURAL DO TRIUNFO
Meu bom e solícito Amigo
Achei interessante fazer a leitura deste quadro. Os jornais são uma fonte de surpresas. Que lindo dar por elas! Queria partilhar com os nossos amigos do Blogue estas impressões ou pistas de leitura que desejaria fiéis à realidade, sem fantasias ou pessimismos doentios. O Sol brilha todos os dias. Não deixemos, porém, de rezar pela chuva abençoada ao Senhor dos Céus e da Terra. Com um abraço para todos, vosso João Lopes
QUADRO da 1º página do Público de ontem
Sempre é verdade que uma boa imagem vale mais do que mil palavras. Que nos diz esta pintura mural , que ocupa o espaço da 1º página do PÚBLICO de ontem, ano da graça de 1 de fev. de 2022? Cada um lê como quiser, ou vê nela a intenção do autor e editor, plasmada em traços objetivos, ou as duas coisas ao mesmo tempo.
O cenário é indubitavelmente o da fachada do Convento-Palácio de S. Bento, a sede da Assembleia da República. Lá está uma parte do seu imponente frontão clássico, com o tímpano preenchido de belas esculturas, de corpo inteiro. Um coluna de capitel da ordem coríntia apoia a arquitrave onde harmoniosamente assenta o referido frontão. A parte da fachada, quase totalmente colorida de rosa, representa a vitória avassaladora do partido-rosa, em todo o seu esplendor. A parte inferior da fachada, o rés do chão, duas janelas com frontão e um balcão , no seu branco cinza, só fazem sobressair a opulência rósea da parede. Esta imagem, só por si, bastava para mostrar a espetacularidade da vitória alcançada.
Mas o editor-pintor quis contar-nos uma história, produzir uma narrativa, com personagens e ações que deixassem bem vincada a dimensão surpreendente da gesta político-guerreira. Que fez ele então? Escolheu o ”herói“ principal para nos contar a história através da pintura. Com a perna direita em cima do 3º degrau de um escadote, com um balde de tinta na mão esquerda, em baixo, e um pincel na mão direita ensopado de tinta fresca, que ergue com ar triunfante, ao nível da altura do frontão. Claramente, foi ele o autor da pintura e da façanha: colorir de rosa a fachada do palácio. E assim se conjugam dois planos: o de celebrar a vitória pela pintura e o de ter conquistado o pleito eleitoral.
Acontece que a sua cabeça, elegantemente desenhada com cabelos brancos ondulados, está, em parte, também acima do frontão. Ele é, sem sombra de dúvida, o maior. O que só por si ocupa o primeiro plano quase inteiro. Corpulento, borbulhante de prazer, levanta na mão direita o pincel, como se uma bandeira ou estandarte do guerreiro fosse e é. Gravata azul, (azul?), colarinho branco, fato preto ou cinza, rosto próspero e rechonchudo, equilibra-se bem, em postura diagonal, num dos degraus do escadote. É a única personagem, das quatro, que se exibe de corpo inteiro.
As outras três mostram a cara e pouco mais. Estão intencionalmente apoucadas na figuração caricatural, mas, nem por isso, menos realista e irónica do quadro. Porque o real vencedor pôs as expectativas de muita gente às avessas.
Cotrim tenta colocar um pé, calçado de sapato de biqueira, num degrau da escada do PODER. Em baixo, com a cabeça metida na cova do braço direito do herói, olhos bem abertos, nariz afilado, cabeleira asseada, já polvilhada de alguns cabelos brancos (sabedoria?)e a testa alta, cachecol azul enrolado num pescoço magro, em vivo contraste com a barbela do protagonista, (que é simultaneamente herói da gesta e trovador) magrinho, dizia, sério e ar sisudo, olhar vivo e profundo, tenta também ele dar uma pincelada azul no mural do triunfo, mas nem sequer força tem para do chão a trincha levantar, esmagado que está pela corpulência arredondada do socialista.
Ventura, o rosto e só o rosto, em diagonal com o Cotrim, barbudo que nem um talibã, com um braço robusto, grosso que nem o dorso de uma jibóia, empunha um serrote de cabo amarelo, decidido a cortar a parte do escadote onde o nosso herói se sustenta. Por cima do seu braço atrevido, sobrepõe-se o pincel pontiagudo do César glorioso.
De boca meio aberta, ele é o cantor das glórias passadas e não havidas: cara quase quadrada, cabeleira negra e espessa, olhos rasgados e zangados, e um nariz bem vincado por dois trilhos verticais, de narinas dilatadas, testa larga por onde navegam grandes pensamentos e projetos de inquisidor-mor do Reino.
E que figura esfíngica e temerosa, a meio-corpo, se descortina na ponta esquerda do quadro, esguia e como fugidia? Nariz saliente e afiladíssimo, olhos azuis esbugalhados de espanto e assombro, com a mão direita ligeiramente apoiada na esquina do palácio, enxuto e magricela, com os tendões do pescoço bem marcados e torcidos, na outra parte do escadote, junto de Ventura, mas com os pés bem assentes na terra, parece-me tentar envolver, com o seu braço esquerdo invisível, a cabeça do Chega. Por trás, crava os dedos no lado esquerdo da cabeça emaranhada e possante do inefável André, com uma saliência pontiaguda na massa capilar. (Unicórnio, cá do sítio, será? ).
Este magricela, esguio, de ar inteligente, mas descoroçoado, é o nosso ilustre Presidente da República que auspiciou uma bonito acordo de cavalheiros e que, de um momento para o outro, se viu reduzido ao mero papel de figura protocolar, tutor formal da maioria absoluta. Diz quem sabe: Com a maioria absoluta de um só partido, é evidente que os poderes do Presidente diminuem em relação ao Governo e ao Parlamento.
No quadro que enche a página, estão intencionalmente ausentes o PSD e os restantes. Não deixam, porém, de estar intensa e paradoxalmente presentes. O diálogo democrático assim o exige e reclama.
João Lopes