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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

Quanto vale meio dia de férias?

25.01.22 | asal

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Hoje, publiquei esta imagem como pensamento do dia. Entre os comentários surgiu o do António Henriques: «Escreve lá uma viagem para o blogue. Abraço.» Despachar abraços e parabéns virtuais é coisa fácil. Sentar-se e teclar uma viagem exige percorrer os labirintos da memória, ter disposição e tempo e condimentar tudo com algum esforço e gosto. Para mim, o mais difícil é sentar-me e começar. Depois, o tormento da releitura.

Viajemos, pois.

Ainda está no segredo dos deuses o que levou os padres no Gavião a atropelar as regras de partida para férias. Em vez de sair pela manhã, como era habitual, foi permitido sair na véspera de tarde. Um grupo de raianos decidiu sair o mais cedo possível. Sempre se ganhavam umas horas dessas tão desejadas! Tudo normal até à estação de Belver. Chegou-se a meio da tarde, mas só havia comboio por volta das 19.00h.

Por ali se andou por aquele deserto -- não havia vivalma na estação --, todos os recantos e buracos foram furados. Vamos explorar a linha para o lado da barragem, sugere alguém. E assim se fez. Passados umas centenas de metros, o olhar fugidio de um colega para o Castelo, propôs: «E se fôssemos ao assalto do Castelo?» Proposta aceite, de imediato. Foi necessário voltar à estação, informar os menos afoitos do plano e da maior demora. Passados estes 60 anos não sei se eram os menos afoitos, se os mais comodistas ou de mais juízo.

Por aquela ravina acima, de pedregulho em pedregulho, com uma grande algazarra lá se foi subindo a colina. De permeio, alguns arranhões e escorregadelas na procura de lugares por onde se pudesse passar. Medo de sardões, lagartos e cobras são coisas dos copinhos de leite da cidade. Não eram problema para rurais rijos como o granito e habituados a estas andanças por serras e montes. Gente que andou aos ninhos e não respeita os animais, dirão os citadinos do PAN e quejandos. O calor e a falta de água incomodavam, os muros intransponíveis dos socalcos das oliveiras eram um obstáculo, mas a alegria da aventura tudo superava. O entusiasmo não diminuiu até chegar à porta do Castelo.

A visita fora agendada na subida, pois havia tempo e era necessário matá-lo. A frustração foi a descoberta da porta fechada e da ausência do casteleiro, o sr. Joaquim. Lembro-me do nome dele porque no ano anterior havíamos feito uma visita e ele foi o guia. Fixei o relevo dado à talha toda trabalhada à navalha. Não era dourada. Era tão valiosa, dizia ele, que os americanos a quiseram comprar e levar para os USA. No meio dessa visita, o sr. Joaquim virou-se para um aluno e diz-lhe: «tu és muito esperto! Esses teus olhos de perdiz não enganam!» Quanto mais tenho de engolir os pensamentos mais eles resistem a fugir pelos alçapões do esquecimento. A minha vontade de rir foi tanta que tive de me esforçar para não desatar o baraço. Esse aluno havia chumbado no ano anterior e na minha turma revelava algumas limitações e dificuldades de aprendizagem. Lá se foi a minha crença na história de os americanos quererem comprar a talha. Pensei com os meus botões: quem consegue descobrir a inteligência de uma pessoa pelos olhos também é capaz de enobrecer uma narrativa com a imaginação. Mais lhe valera ter comparado a beleza dos olhos de perdiz à beleza da talha. Pois ,…, Mas ele não conhecia São Tomás para quem a Beleza é id quod visu placet. Até me custa a admitir que São Tomás tenha dito isto na qualidade de santo. Qualquer parolo para a contemplar a beleza física, chegando a atropelar o trânsito, mas não há olho que veja a beleza interior. Aliás, se não há olho para ver essa beleza, como sabemos que ela existe e está presente? Paro por aqui, não vá alguém dizer-me que o pior cego é aquele que não quer ver. Seja como for, neste caso o trânsito continua.

Na descida viemos por dentro de Belver estrada abaixo até à estação. Aí aguardamos o comboio antecipando a noite que se avizinhava. Da viagem até Castelo Branco não registei nada de especial. A novidade era o reboliço e agitação interior onde se misturavam expetativas, planos, receios sobre a dormida na sala de espera da estação de Castelo Branco. Poderíamos ficar lá a passar a noite era a grande incógnita. Assim aconteceu, dado o chefe da estação assim o permitir. Uma longa noite sem dormir em cadeiras de suma-pau. A tasca da estação tinha fechado pouco depois das 21.00h. Quase logo após a nossa chegada. Os tostões contados para a carreira da manhã seguinte não permitiram que nos adiantássemos na compra de alimentação. A partir de uma certa hora, com a fome a apertar, já sem posição para estar, a par do cansaço e do esmorecimento surge o frio. Lá tivemos de abrir as malas, desarrumá-las, ou melhor dar-lhe outra desarrumação,  e procurar agasalhos. Nem todos resolveram o problema satisfatoriamente. As hostes só voltaram a animar por volta das cinco da manhã. Os primeiros a partir foi por volta das seis.

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Não direi que foi uma bela e cómoda viagem. Mas foi uma grande e rica aventura. Um punhado de raianos sonhou transformar a Nau Catrineta em carruagem de comboio. Não enjoaram, mas tiveram muito que contar.

Mário Pissarra

 

NOTA: Obrigado, Mário! Sempre nos ocupamos uns aos outros, agora que é perigoso juntarmo-nos. Hoje fui a Setúbal, pensei logo no João Far. Alves, mas não disse nada... Triste vida esta! Temos de nos distrair de outro modo. Vivam as redes sociais! E agora qual é o que se segue? AH