A MULHER durante o regime comunista no Afeganistão ( 1979-1992)
“ As coisas foram sempre difíceis para as mulheres deste país, mas elas são provavelmente mais livres agora, sob o regime comunista, e têm mais direitos do que alguma vez tiveram.” Khaled HOSSEINI, Mil Sóis Resplandecentes, 7ª edição, Presença, 2008, p. 109
O domínio político da União Soviética na terra afegã, durante 13 anos, não se saldou só pelo que de destrutivo uma invasão militar sempre comporta. Para mais, tratando-se de uma grande potência e de um pobre país enfraquecido pelas divisões tribais, pela má distribuição da terra, pelas secas e por uma cultura conservadora e patriarcal, onde as mulheres eram claramente desclassificadas.
Os comunistas cedo perceberam a necessidade da instrução básica e superior da mulher, como base de uma sociedade progressista e garantia de recuperação de direitos, de justiça e equidade em relação aos homens. Pode a visão maniqueísta, polarizada nos extremos do Bem e do Mal, (como a de Reagan!) teimar em não entender que do dito Império do mal ( Reagan) alguma coisa de bom possa ter nascido. Esta visão, porém, inquinada de dualismo intransigente, não é boa conselheira, porque intelectualmente redutora e preguiçosa.
O comunismo valorizou o papel da mulher na sociedade afegã, criando programas de alfabetização por todo o país, mas com particular incidência na capital, já de si, neste aspeto, muito desenvolvida, sobretudo nas classes abastadas; criou novas universidades e hospitais, facilitou o acesso ao ensino e à saúde, construiu novos bairros e habitação social, rasgou estradas e avenidas… em suma, imprimiu uma dinâmica de desenvolvimento, alavancando o estatuto das mulheres num país islâmico que não primava propriamente pelo reconhecimento da dignidade feminina, abafada pela “preeminência sobre elas” por parte dos homens, como reza o sagrado Alcorão, logo na sura II, 228.
Havia a convicção de que, pela educação e instrução superior, a mulher conseguiria libertar-se da montanha de preconceitos ancestrais, que pesavam inelutavelmente sobre o seu triste fado, numa sociedade que a sequestrava em casa, sobrecarregando-a com trabalho e subtraindo-lhe o direito a sair à rua, livre e solta da tutela do homem, ou de uma burqa embaraçante que a tornava invisível, um fantasma numa noite de breu. Sim, havia que romper de vez com a tradição tribal de dominação masculina e com o mercadejar dos casamentos em idade púbere ou mais avançada sem que o coração da interessada fosse sequer ouvido, visto que a família tratava do assunto ou do” negócio” nas costas da pobre jovem, atirada à força para as mãos de um desconhecido mais velho 30 a 40 anos ou até mais. Quadros verdadeiramente pungentes cobrem de sangue e dor as páginas da literatura mais recente e antiga como As Mil e Uma Noites, coleção persa de contos maravilhosos do mundo árabe (dos séculos VIII ao XV) onde o cómico se casa com o trágico, o heróico com o erótico. É, por isso, coisa bonita de ver as ruas de Cabul e Herat, as cidades mais belas e desenvolvidas, coloridas com o riso libertador das estudantes do Liceu e da Faculdade, de cabelo ao vento ou cobertas com um simples hijab, azul ou preto sobre a cabeça, para não ferir demasiado os costumes da comunidade. Apesar da guerra, respirava-se liberdade. Pena que não fosse em todo o território.
Deixem-me, a propósito deste “ papo”, conversa que tenho com vocês, contar-vos o que me aconteceu na ilha de Jerba, no sul da Tunísia, em meados dos anos noventa. Para já, no imenso resort, mulheres a trabalhar, nem vê-las!! Tínhamos um guia, homem novo, bem apessoado, de barba aparada e marrafa perfeita, simpático… As mulheres andavam doidas com o Habib! Um dia, perguntei-lhe: Alors, Habib, moi, j´ai une demande à vous faire. On aimerait voir votre épouse. - “ La mienne? Elle est à la maison! - Toujours à la maison?- Bah, oui! –Le jour et la nuit? – Oui, tout le temps. Je l´accompagne au souk( Mercado) et à la mosquée. --- Et même là les femmes mises à part dans un coin, non?- Oh, naturellement. Pourquoi pas?” Caladinho, fechei a boca. O terreno era escorregadio por demais. E estamos num país muçulmano dos mais avançados!
Em 1986-87, no auge do regime, um prof. universitário, saneado, incitava as filhas a estudar e a não pensarem em casar. “O casamento pode esperar, a educação não. (…) quando esta guerra acabar, o Afeganistão vai precisar tanto de vocês como dos seus homens, talvez ainda mais. Porque uma sociedade não tem hipótese nenhuma de progredir se as suas mulheres forem ignorantes. Nenhuma!” Mil Sóis Resplandecentes (p. 94) Ele achava que a única coisa que os comunistas tinham feito bem, fora, precisamente, no campo da educação das mulheres. Mais de dois terços dos alunos da Universidade de Cabul eram, no momento, mulheres, estudantes de direito, medicina, engenharia, línguas…” Mas é verdade, é uma boa altura para ser mulher no Afeganistão.”(p. 109)
Infelizmente, este arejamento da vida pública, liberal e progressista, era quase só visível em Cabul e Herat… uma vez que, nas áreas tribais dos pastunes, mais aferrados às tradições, à intocável Charia, imune ao passar dos tempos, no Sul e Leste, o que se via era o reverso da medalha. Enclausuradas em casa, as mulheres não saíam à rua. E, quando o faziam, era de burqa, essa vestimenta-prisão, sufocante, que as paralisava e impedia de ver em várias direções, e mesmo assim, de homens acompanhadas.
Pois bem, nessas regiões, onde agora campeavam os mujahidin, na guerra santa contra os soviéticos, os próprios homens haviam-se rebelado contra os decretos comunistas para a libertação da mulher, para abolir o casamento imposto e elevar para o mínimo de 16 anos a idade núbil. Para esta gente, pastune na sua maioria, era um pecado contra Alah e a sua santa fé, aceitar no espaço público a presença simples e natural da mulher, como ser humano de pleno direito. Ela, só por si, constituía um perigo para a boa ordem social, um incentivo involuntário à natural luxúria dos homens. Estudar, libertar-se da autoridade masculina, nem pensar. “ Teoricamente, a crente é posta no mesmo plano que o crente, mas a sua situação relega-a, na prática, para uma condição de menoridade…” ABCedário do Islão. Jornal Público, 2000, p. 93. Terrível tradição esta a de um patriarcalismo, arcaico e misógino, que “consagra a inferioridade essencial da mulher” como diz Garaudy em Religiões em Guerra. Lisboa, Ed. Notícias, 1996. P.32
Nestas sociedades, apesar das restrições de uma religião fortemente politizada, as mulheres têm encontrado o seu espaço de emancipação, através do saber e competência, alcandorando-se aos altos cargos de liderança, cívica e religiosa, em pé de igualdade com os homens. Às vezes, com menos réditos e direitos, mas lá chegaremos… Estou a pensar no mundo islâmico e não só. Se até, no Paquistão, na Índia, no Afeganistão dos comunistas e americanos, elas têm triunfado! O bom Deus, quando as criou, não estava a dormir! Isto não é complacência paternal, nem tão pouco “captatio benevolentiae”, mas verificação de facto. Se até Sara manda em Abraão, Rebeca em Isaac e Raquel em Jacob!...
Uma história final para compensar as minhas queridas leitoras e leitores: No souk de Jerba, uma ourivesaria. Na montra, cintilavam os rubis, esmeraldas e safiras, cravejados no couro de uma carteira de senhora. “ Gosto desta--diz ela.- Tens bom gosto - diz ele. “ Oh, madame, s´il vous plait! Voyez, voyez! C´est belle! Magnifique” Pas cher, pas cher. Venez voir mieux!” E o sacana do turco leve, levemente, leva a mulher para a sala dos fundos. Olhos arregalados, as papilas gustativas salivando, doido completamente doido por aquela senhora, sem véu, alçando os ombros como prova de virilidade e vaidade… Num ápice, ele, o marido, apercebe-se do perigo, dispara-lhe uma palmada na mão, a carteira rola no chão, e agarra a mulher. E cá fora, o sem-vergonha, chispando lume das pálpebras, ainda propõe: trinta camelos, a montra toda! Bonne affaire, bonne affaire. Business, good business.--- “Va t´en, va t´en, cocu du diable!. Por Alah!” E dali saíram antes que aparecesse um navalhão ou uma adaga árabe que os desmanchasse mais depressa que a um cabrito. Mulher, sem proteção capilar, pode passar por uma oferecida, que faz ferver o sangue agitado de qualquer beduíno do deserto.
Tashakor, salam ! Obrigado em afegão.
Coimbra, João Lopes