GUERRA CIVIL (1992-1996)
Como os comandantes dos mujahidin se envolveram, inesperadamente, numa guerra fratricida pelo Poder, destruindo Cabul e escancarando as portas aos talibãs…
Os soviéticos partiram em 1989, mas, ao contrário dos americanos, não beneficiaram da ajuda internacional e não entregaram o governo de bandeja aos inimigos da democracia e do progresso, como aconteceu no malfadado dia 15 de agosto de 2021. Deixaram na capital o governo de Nadjibullah, socialista, moderado e conciliador, que inaugurou um curto período de bem-estar e liberdade de 1989 a 1992, um tempo feliz, como testemunharam vários intelectuais na reportagem da RTP3, em setembro passado.
Nadjibullah conhecia a fome de poder das fações tribais, atraídas pelo domínio exclusivo dos corredores do Poder Central e pelo gozo das riquezas da capital, uma cidade milenar, moderna e cosmopolita, que os soviéticos protegeram dos ataques dos jihadistas radicais, que não suportavam ver o seu país profanado pelo domínio do ateísmo militante. Prevendo a tragédia de um conflito de afegãos contra afegãos, tudo fez para o evitar. Mas, agora que os mujahidin estendiam o seu controlo sobre a totalidade do país, entrando pela capital, de kalashnikov em riste, outra alternativa não teve senão demitir-se e procurar refúgio na embaixada da ONU.
Mal se viram na posse da cidade, os comandantes dos mujahidin instauram um regime islamista, pondo a nu as clivagens étnicas, religiosas e políticas das fações, escondidas ou disfarçadas enquanto combatiam o invasor estrangeiro. Ainda, em Peshawar, no Paquistão, reuniram-se em conselho, tratando logo de mudar o nome do país para Estado Islâmico do Afeganistão. O Conselho da Jihad Islâmica, presidido por Rabbani, tajique, professor universitário de Islamismo, com outros líderes e anciãos, foi encarregado de preparar eleições democráticas que nunca chegaram a realizar-se porque, entretanto, rebentou a discórdia entre os comandantes. Trocaram insultos, apontaram-se acusações. Hekmatyar, pastune, engenheiro, a quem os americanos entregaram um arsenal de armas para combater os soviéticos, ainda possuía o suficiente para vencer o seu inimigo, Ahmad Shah Massoud, tajique, conhecido como o Leão do Panjshir, um diplomata culto e carismático, que ambicionava formar governo, excluindo o protegido dos EUA.
Foi terrível a rapidez com que tudo aconteceu! Sem darem tempo ao diálogo e concertação, os comandantes tratam de organizar o seu próprio batalhão e correm todos para Cabul, o palco e epicentro das operações militares. E lá vão com a suas munições de rockets, mísseis, bombas e kalashnikovs … Pasthunes, Hazaras, Uzbeques, Tajiques, sunitas e xiitas, têm pressa em se matarem uns aos outros e de confrontar as comunidades com um horror de guerra e destruição. Quem vencer, tomará o poder.
Chegam e retalham a capital em seis zonas militares; instalam o seu quartel-general e, durante quatro anos, dedicam-se, com ferocidade selvagem, à sinistra obra da destruição da sua bela e próspera Capital. Chovem rockets sobre as escolas, hospitais, edifícios históricos, bairros, tudo, em dois tempos, reduzido a pó, escombros, um cemitério de cadáveres, que os cães disputam entre si. E chamas, muitas chamas! “Os nossos ouvidos habituaram-se ao assobio das bombas a cair, ao trovejar de metralhadoras, e os nossos olhos a ver retirar os corpos dos escombros. Nesse tempo, ((1992-1996) Cabul era aquilo a que se costuma chamar um inferno na Terra.” (O Menino de Cabul,p.197)
Nas horas vagas, os mujahidin ocupam casas desabitadas, pilham o que tem valor, (muitas havia, de 2 a 3 milhões de afegãos que fugiram da carnificina), arrombam outras, entram e violam mães e filhas diante dos homens que, depois, por mero sadismo, degolam com a faca da cozinha…Chegam a recrutar rapazes para o seu bando de capangas, e, se não correspondem, esmagam-lhes os testículos com alicates.
Ninguém saía à rua. Corriam notícias de homens assassinados, de raparigas violadas e abandonadas na estrada. Numa cidade em ruínas, trabalho não havia, e a fome e o frio flagelavam a população.
Dada a sua superioridade militar em homens (pasthunes) e armas americanas, Hekmatyar averba sucessos sobre Massoud. Mas de pouco ou nada lhe servirá.
Vêm aí os talibãs, e, à sua chegada, em setembro de 1996, fogem todos. Não fica um comandante para contar a história! Acabou-se o reino da anarquia, da pilhagem e do jogo da morte de inocentes. O povo já nem sequer podia ouvir falar em mujahidin, palavra amaldiçoada, o próprio nome cheirava a asco; e os seus comandantes, corruptos e gananciosos, armados até aos dentes, ricos à custa da heroína, declarando a jihad uns aos outros, e a quem estava no meio (uma blasfémia para o verdadeiro Islão!) recolhem à sua região ou refugiam-se no estrangeiro. (Mil Sóis Resplandecentes, p. 213)
Os jovens teólogos, isto é, os talibãs são recebidos em apoteose. Puros e incorruptos, apresentam-se como libertadores de uma tirania sem freio, unidos pelo mesmo ideal, religioso e guerreiro. Finalmente, a paz e a ordem! E o Povo, martirizado, acreditou. Acabaram-se os rockets, e a gente pode sair à rua para comprar uma caneca de leite.
Coimbra, João Lopes