Casa de Bravos III
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“ Nunca um país terá merecido tanto o seu sobrenome “cemitério de impérios”. Depois de ter expulsado os mongóis e os persas, o Afeganistão pôs fora do seu território o Reino Unido no Séc. XIX, a União Soviética no séc. XX e os Estados Unidos no séc. XXI” ( Le Monde Diplomatique, Setembro/ 2021)
O leitor comum fica admirado com esta asserção de significado épico, pelo menos na aparência, e naturalmente vai à procura das raízes da identidade de um povo que sempre teve forças para sacudir o jugo de um invasor estrangeiro.
Antiguidade: Província do Império Persa dos Aqueménidas, a Satrapia da Bactriana, nome sob o qual se esconde, em parte, o Afeganistão de hoje, foi uma das conquistas de Ciro, o Grande, ( 556-530) , o mesmo que o profeta Isaías exalta como o libertador do Povo Hebreu em 538, quando derrotou os Babilónios.
Em 229 a.C, Alexandre Magno (356-323) conquistou a Pérsia. Invadiu a Báctria, onde, em reconhecimento pela ajuda do governador persa, Oxiartes, casa com a sua filha Roxana, princesa persa ou melhor afegã. Depois de ter esmagado a revolta do sátrapa da Ária, fundou, no atual Afeganistão, mais três ou quatro Alexandrias, que ainda hoje preservam a memória do Rei dos Macedónios e Imperador dos Persas: Herat, a Oeste; Alexandria do Cáucaso na futura Cabul; na Aracósia, a Sul, Kandahar.
Ao contrário dos Aqueménidas, Alexandre preconizava o casamento monogâmico que, na sua opinião, melhor assegurava os direitos das mulheres. Obrigou os militares macedónios a tomarem mulheres persas, como únicas e legítimas esposas. Por seu turno, conseguiu envolver os soldados indígenas no programa das suas campanhas de conquista e ocupação do Oriente asiático. A tolerância pelos costumes e poderes locais, o respeito pela diversidade cultural foi o segredo da rapidez da sua vitória política e militar desde o Mediterrâneo Oriental ao Índico, passando pela Pérsia. O nosso herói morreu aos 33 anos, talvez por envenenamento (Lê-se com muito proveito o livro de Claude Mossé Alexandre, o Destino de um Mito. Ed. Europa-América, 2005).
Os Selêucidas, seus sucessores, mantêm-se senhores da região até 250 a.C. Segue-se um período de lutas intestinas e a Bactriana, centro geográfico do futuro Afeganistão, torna-se independente.
No séc. II a.C., os Kusana, vindos da China, estabelecem-se no vale do Oxos, o nome antigo do Amudária. À sombra dos reis gregos da Bactriana, fundam um império cosmopolita que, estendendo-se até à Índia, se tornou um cadinho de culturas indiana, chinesa, centro-asiática e greco-romana. É no seio deste império que, no séc. II d.C., emerge o Budismo. Não sabemos quando, mas, justamente no vale de Bamyian, sopé do InduCuche, já temos sinais da sua presença a partir, pelo menos, do séc. V. Os monges escavaram mosteiros nas grutas, e a região depressa se tornou num santuário de peregrinações. ( Ver Mil Sóis Resplandecentes de K. Hosseini, pp. 117-118) Aqui se ergueram, no séc. VI, as duas estátuas monumentais de Budas, destruídas pela fúria religiosa dos talibãs em 2001. Os Kusana ficam na região de Cabul até à invasão dos Hunos no séc. V, sobrevivendo, no entanto, na região centro dos mosteiros até à invasão árabe, no séc. IX. Na região oeste, na fronteira com o Irão, vivem os Sassânidas, persas zoroastristas desde o séc. II até ao séc. VII da nossa era.
A invasão árabe, essa vasta jihad, alastrou, como um tsunami, a oriente e ocidente, em meados no séc. VII. No Afeganistão, porém, teve de retardar a marcha pois só no séc. XII se deu por concluída, e mesmo assim não completamente! A princípio, o islão teve de coexistir com outras religiões da Pérsia e do Centro asiático: zoroastrismo, budismo, judaísmo, cristianismo e hinduísmo. Os zoroastrianos refugiaram-se nas montanhas, recusando a islamização. Com o avançar dos anos, o Islão, adaptando-se bem às culturas locais, ganhou terreno e acabou por se impor como confissão preponderante.
Em meados do séc. VII, o mundo muçulmano dividiu-se em duas grandes correntes. O sunismo (expressão derivada de sunna ou doutrina de Maomé, (570-632) profeta de Deus, foi adotado pela maioria de muçulmanos (90%) e , no Afeganistão, conquistou a da tribo dos pastunes, a maioritária; o xiismo, a versão islâmica minoritária, fundado por Xiat Ali (Xiat: xiismo), primo e genro do Profeta, casado com a sua filha Fátima. Só mais tarde, já no séc. XIII, é que o xiismo se impôs na tribo dos Hazara, descendentes dos Mongóis de Gengis Khan que devastaram o país em 1221-1222. Por isso, os Hazara, tribo sempre odiada, (ver pp. iniciais do Menino de Cabul) tiveram de contar com a proteção do Irão, igualmente xiita.
Em 1380, vem, em marcha infrene, a cavalaria do terrível Tamerlão, a cujos sucessores se deve o renascimento de Herat, cidade de poetas, a oeste, perto do Irão, no séc. XV.
O Império Mogol: A leste da Pérsia, estendia-se o Império dos Grão-Mogóis, fundado no Norte da Índia, no séc. XVI por Babur, descendente de Tamerlão e de Genghis Khan. Babur tinha uma especial predileção por Cabul, que transformou numa bela cidade, escolhendo-a para sua sepultura. Ainda hoje se pode visitar o seu mausoléu, uma espécie de centro de peregrinação.
Época moderna: Monarquia “ Os reis pastunes governaram este país durante quase duzentos e cinquenta anos, e os tajiques, uns meros nove meses, em 1929.” ( Mil Sóis Resplandecentes, o.cit. p.105) O tempo referido da monarquia vai de 1747 a 1973. De facto, em 1747, o chefe tribal Ahmad Khan Durrani fundou um Estado monárquico com a capital em Kandahar, sendo, por isso, considerado o pai da nação, o que, de alguma forma, veio atenuar o tribalismo, pela via da centralização do Poder. Em 1776, ocorre a transferência da capital para Cabul, mais a centro, cidade de gloriosas tradições, protegida pela fortaleza montanhosa do HinduCuche. Em 1838, o chefe do clã pastune, Barakzay, toma conta do poder, conseguindo reunir as tribos para enfrentar as pressões da Rússia czarista e os britânicos da Índia, que teimavam em apoderar-se da Passagem de Khyber, um corredor de 50 Km que, por entre montanhas, fazia a ligação entre o Afeganistão e a antiga Índia, já sob o domínio britânico. Duros e valentes combates se travaram em 1838-1842 e 1878 em que os afegãos, recorrendo às imbatíveis táticas de guerrilha, conseguem escorraçar o exército de Sua Majestade. São as tão afamadas guerras afegãs, que ficaram na memória coletiva, como sinal e emblema da honra e orgulho do povo afegão, que se supera a si mesmo quando logra vencer o isolamento tribal. Razão tem o professor, saneado pelo regime comunista em 1978, “Toda esta conversa de eu sou tajique e tu és pastune, e ele é hazara e ela é usbeque. Somos todos afegãos, e apenas isto devia interessar” ( o.cit. p.105)
E chegamos a 1919 quando um homem de grande energia, de perfil reformador, o emir Amanullah Khan reúne as forças tribais e invade a Índia com o propósito de levar os Britânicos a reconhecer a plena independência política do Afeganistão. Em 1926, intitulou-se REI, empreendendo uma série de reformas que visavam mudar a face de uma sociedade atrasada, tribalista e feudal, sob o domínio religioso e opressivo dos Mullah. Propunha o fim do uso obrigatório do véu, da burqa; o fim da poligamia; alteração das leis sobre o casamento, em que uma jovenzinha de 9 a 10 anos era forçada a casar com um velho de 50 ou 60; e educação escolar para todas as mulheres.
E qual a reação dos chefes tribais e dos mullahs? Declararam a djihad contra o rei. “ Um tsunami de barbudos revoltados abateu-se sobre ele. Prendem-no, arrastam-no para as costas da Índia, depois Itália e Suíça, onde morreu como um velho desiludido e exilado” (K. Hosseini, E as Montanhas Ecoaram, p.177)
Em 1933, Zadir Shah sobe ao trono como rei de uma monarquia constitucional, governando, sem sobressaltos, um país ferido por profundas desigualdades sociais. As classes dominantes, aristocracia e burguesia comercial, com as suas viagens à Europa e os seus negócios florescentes, davam a Cabul um ar de modernidade. O povo trabalhava no artesanato ou no campo. O pior eram as secas e a fome que flagelavam ciclicamente os pobres camponeses. Na parte dos costumes, nada se alterou: poligamia, casamentos infantis, menoridade feminina, discriminação étnica e tribal… e uma chusma de pedintes pelas cidades. E o rei lá esteve, durante 40 anos, até 1973, ano em que o seu primo, o príncipe Daoud Khan o destronou, sem violência, proclamando a República.
E lá em cima, nos vizinhos do Norte, no Uzbequistão e Tajiquistão, o Kremlin impunha, à força, a socialização da economia, com a revolta inútil dos camponeses que tiveram de ceder as suas terras para os grandes planos da monocultura do algodão.
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Na montanha de Pamir, no Tajiquistão, precisamente na fronteira com a terra afegã, a nordeste, levanta-se um pico de 7495 m, rebatizado pelos soviéticos de pico Comunismo. O partido comunista afegão, extensão do poder soviético, formou-se nos tempos da monarquia. É de crer que, no labirinto dos corredores do Kremlin, se gizassem planos de conquista rápida e total. O Pico lá estava como desafio e sinal de ambição. Os deuses enlouquecem aqueles que querem perder! É o que veremos. (Continua) João Lopes