À volta de um quadro
IMAGINAR, IMAGINAR... É o artista, é o escritor, é o leitor... Um convite a apreciar este texto de um amigo que gosta de dar relevo à palavra. AH
UMA NOITE NA ÓPERA
O quadro seduz-me, não pela minha capacidade de o observar como perito em pintura, tão pouco pela capacidade crítica de o analisar, que não tenho.
Atrai-me porque vejo nele mão de mestre: pela harmonia, pelas cores, pelo desenho das figuras, pela reprodução da proporcionalidade, pela força das ideias que pretende imprimir e transmitir, pelo equilíbrio, pelo talento que se adivinha sair do pincel.
Interpretá-lo, numa perspectiva crítica e análise de pormenor? Não se me peça o impossível. Mas dando de bom grado que a este não devemos ceder facilmente, libertar-me-ei de preconceitos para dizer o que penso, o que vejo e o que julgo entender. Até para gáudio do autor que estará muito cioso da criatividade que é dele e que a não pretende partilhar, senão na exposição visual que cede em gesto de contemporização e de gozo íntimo.
Perscruto, visualizo de ângulos variados e reduzo-me ao intérprete da vulgaridade, sem conseguir ir além do que parece evidente para o observador comum.
E que vejo eu? Apenas o que é frequente e habitual para além do espectáculo em si mesmo: o exibicionismo interpretado nas mais diversas formas.
O vestuário requintado para uns carnavalesco para outros, as posturas hirtas e desengonçadas em trejeitos de esforço dorido, os olhares oblíquos e ancilosados, o artifício estudado, a peça exibida fora do palco. Nota-se uma espectacularidade onde o individual procura sobrepor-se ao colectivo, onde se denuncia sem sofismas que se foi ali mais para ser visto do que para ver. E até nos contactos pessoais, sempre revestidos duma afectação recheada de postura ridícula, os personagens não falam, antes dizem o que não pretendem exprimir, porque o despeito indisfarçável a isso os obriga a coberto da força do hábito.
O quadro, numa espécie de anfiteatro de valores sociais, cuida de salientar a princesa ou rainha no seu camarote central, onde assume uma postura digna e consciente de quem sabe que ser súbdito é bem mais difícil do que ter poder entronizado, seja por Deus seja pelos homens.
A postura serena de quem conhece os fracos do servilismo humano, confere-lhe a serenidade natural ou estudada que convém ao conjunto do espectáculo para prestígio da sua dignidade real.
O artista imaginou e pintou, em pinceladas vigorosas e harmónicas, um quadro que ficou uma obra de arte. Por seu intermédio, limitei-me a imaginar. Se consegui tocar ao de leve na criatividade do artista, ficarei consolado e até vaidoso. Só que jamais o saberei. Deixá-lo, ficam dois quadros: o verdadeiro e o falso. Mas no meio de tanta falsidade, o que sempre há-de prevalecer será o talento do artista, bem como a obra que a sua genialidade nos ofereceu.
Apaguem-se as luzes. O espectáculo vai começar. Para descanso de muitos e deleite de alguns. Corpos hirtos nas poltronas, o intervalo virá a seguir. E o quadro repetir-se-á indelevelmente.
O Artista criou, o escrevinhador rabiscou, a Ópera acabou.
A. Pires da Costa