Seremos todos Don Juan?
Princípio do prazer
Hoje, pela manhã, passei pela zona comercial da cidade. Entretive-me, alguns minutos, a observar uma criança a jogar à bola no seu interior. De vez em quando, a bola ia bater nos expositores de venda e nos produtos expostos. A mãe limitava-se a dizer: cuidado! Mas ele continuava a jogar. Não se pense que foi a primeira vez que observei tal comportamento. Aconteceu que, em certas ocasiões não me contive, e chamei a atenção dos pais. Nem sempre fui bem recebido.
O não contrariar a criança, o elogio da espontaneidade e a condenação da repressão --esse diabo à solta, esse papão sempre pronto a atacar e a mãe de todas ameaças infantis --, o não saber dizer não e a divinização do «é proibido proibir», etc., tem as consequências que todos conhecemos na educação, nos comportamentos em sociedade e na submissão futura dos pais aos caprichos e frustrações dos filhos. Mesmo que os pressupostos possam ser discutíveis, as consequências estão à vista.
Ao dirigir-me para casa, dei comigo a pensar na tirania do desejo. A criança que não é contrariada, que não aprende os limites do viver com os outros e na sociedade, tende a viver sob o império do desejo. No império do desejo só há uma lei: a sua satisfação aqui, agora e já! Tudo o resto, não existe. Neste império, ensinou-nos Freud, não há superego (conjunto das imposições sociais), nem tão pouca a actividade racional do ego. Reina a tirania do princípio do prazer, pois o princípio da realidade está ausente ou é expulso pela complacência e passividade dos pais. Não há censura.
O toxicodependente é também uma pessoa que vive no império do desejo. Na fase inicial pelo prazer que as drogas proporcionam. Como o desejo é, por natureza e como os gregos nos ensinaram, insaciável. Assim nessa busca de prazer o caminho lógico é aumentar a quantidade ou a qualidade para manter ou fazer crescer o efeito. Numa segunda fase, em que a vontade já é por si só impotente para reverter a situação, o ciclo reverte-se, as drogas são tomadas para impedir a dor da ressaca e os sintomas da carência.
A dúvida chegou quando cheguei ao Don Juan. O estudo do filósofo dinamarquês, S. Kierkegaard, ensinou-me que o estado estético da vida consistia em viver a saltar de prazer em prazer e era tipificado na personagem de Don Juan. Era uma forma inferior de vida, segundo ele, ao estado ético, ilustrado por Sócrates e incomparável ao comportamento de Isaac, exemplo do estado religioso. Aparentemente, a nossa sociedade, que apelidamos de hedonista, faz a apologia do estado estético. Este borboletear de prazer em prazer, pelo prazer do prazer, está pouco aberto a imposições sociais. Regras, constrangimentos ou ideais.
Como à criança, muitas vezes, o que lhe interessa é a compra da coisa e não a coisa, o D. Juan não lhe interessa a mulher conquistada, mas a conquista. Com os pensamentos ensarilhados e as ideias assanhadas, sob a ameaça da pergunta « no nosso tempo e na nossa sociedade, seremos todos Dom Juan?», cheguei a casa.
Eram horas de fazer o almoço. Não pude continuar. A cozinha é um lugar onde, frequentemente, é difícil resistir ao princípio do prazer. Desenvencilhar estes pensamentos e ideias, naquele lugar, é um sacrilégio.
Mário Pissarra