Hans Küng e a eutanásia
Parece que é uma constatação:
«...as pessoas que acompanharam as doenças terminais de pessoas queridas e assistiram ao seu sofrimento e degradação física refugiam-se num silêncio cúmplice de aceitação da eutanásia».
Uma oportuna reflexão do Mário Pissarra, sempre a pedir-nos para reflectir! AH
Hans Küng é para mim um teólogo de referência. O nosso primeiro encontro teve um tema inicial privilegiado - as suas críticas à encíclica Humanae vitae de Paulo VI (1968), ainda em Portalegre. Quando cheguei a Valadares, tive oportunidade de ler uma das suas obras capitais: a "Igreja I e II" (da saudosa Moraes Editores). Dessa época ficou-me sempre a exigência do Vaticano II – Do regime de cristandade à abertura ao mundo, isto é, a passagem de uma mentalidade de cerco para uma valorização das realidades terrestres.
Um dia em 1973, recém-chegado a Abrantes, o Pe. Henrique Pires Marques viu-me a ler um grosso volume de H. Küng sobre a filosofia hegeliana e a Encarnação (La Encarnación de Dios. Introducción al pensamento de Hegel como prolegómenos para una cristologia futura). Pediu-mo porque também gostaria de o ler. Quando mo devolveu, conversámos sobre o livro e ele confessou-me: «sabes, tenho pena de não ter mais preparação filosófica para o compreender bem».
Passados uns anos, numa reunião de formadores de Filosofia em Fátima, ao almoço, a minha colega Maria José falou deste teólogo e eu alimentei a conversa e discuti, para espanto seu, algumas das suas teses ora mostrando acordo, ora levantando objeções. Expliquei-lhe, então, qual era a minha formação e ela confessou-me que gostaria muito de ter a sua obra - a Igreja, mas já não existia no mercado. Cheguei a Abrantes, peguei nos dois volumes e enviei-lhos. Passados uns tempos, muito agradecida, enviou-me o livro de Gaston Bachelard, Le Rationalisme Apliqué.
Muito mais tarde, numa das reuniões no "Nova Aliança" (Jornal do Arciprestado de Abrantes), o meu amigo C. Barata Gil mostra-se também muito interessado em ler um livro de H. Küng de que tinha lido algumas referências. Pelo contexto, percebi que se tratava de uma obra célebre e volumosa – Existiert Gottt? (Deus existe?) que o autor resume assim: «através de uma revisão aprofundada da crítica clássica da religião nos séculos XIX e XX: a teoria da projeção de L. Feuerbach (na qual se baseiam a teoria do ópio de K. Marx e a teoria da ilusão de S. Freud) não é capaz de demonstrar que a vida eterna seja somente uma projeção do ser humano, uma vaga esperança interessada, uma ilusão infantil. Não poderia passar-se precisamente o contrário? Ou seja, não seria possível que fosse a negação ateia de uma vida eterna a basear-se numa projeção assente na crença na bondade da natureza humana (Feuerbach), na sociedade socialista (K. Marx) ou na ciência racional (Freud)?” (p. 114) Um belo dia, o Barata Gil lá ganhou coragem e disse-me que gostava muito de ter aquele livro que eu lhe tinha emprestado (a versão em castelhano). Ficou radiante quando lhe disse: pode ficar com ele! Passados uns tempos ofereceu-me um dicionário bíblico.
Recentemente, li a seguinte referência num livro sobre a eutanásia (M. Oliveira, Eutanásia, Suicídio Ajudado, Barrigas de Aluguer. Para um debate de cidadãos da Caminho):
Continuei a comprar as obras deste teólogo que encontrava em línguas que me permitissem a sua leitura. Recentemente encontrei esta referência:
“Daniel Callahan, um dos fundadores da Bioética, na sua recente autobiografia "In Search of the Good" admite que despenalizar a eutanásia seja um convite ao abuso.
E Hans Küng, teólogo católico, doente e quase nonagenário, deseja para si mesmo (Glükcklich Sterben), se necessário, o suicídio medicamente assistido.
Compreendo estas duas posições “ (p. 223) conclui este médico que já presidiu à Comissão Nacional de Ética.
Esta semana encontrei o livro e li-o de imediato. O tema tem merecido a minha atenção desde que integrei a Comissão de Ética do Hospital de Abrantes. Ao ler o livro e as referências à morte do seu irmão e do seu amigo Walter Jens, cimentou em mim uma velha convicção: as pessoas que acompanharam as doenças terminais de pessoas queridas e assistiram ao seu sofrimento e degradação física refugiam-se num silêncio cúmplice de aceitação da eutanásia. Hans Küng tem a coragem de assumir uma posição de desafio à hierarquia, suportando todo o peso pelo que simboliza, ao assumir o modo como gostaria de morrer. Deixo-os com as suas palavras essenciais sobre o tema.
ENTREVISTA
Jornalista (A.W) -- Toda a gente sabe que Hans Küng é uma voz que tem criticado a Igreja, talvez a mais conhecida dessas vozes. E é verdade que critica a Igreja do interior da Igreja, como teólogo católico, mas também como sacerdote católico. Ora, a sua Igreja opõe-se decididamente a que uma pessoa possa determinar por si própria o momento de despedir-se da vida. A sua Igreja entende a vida como um dom de Deus. E, por conseguinte, considera que o suicídio nega o sim de Deus ao ser humano. É o que diz o catecismo. Assumir uma atitude diferente será para si levar a cabo, de uma maneira ou de outra, um último protesto perante a igreja oficial?
Hans Küng – Em primeiro lugar, creio que a direção da Igreja deveria esforçar-se por adotar uma atitude diferente perante a eutanásia. Não se trata apenas da congregação dos fiéis, há, parece-me, 77% dos seus membros que, segundo os inquéritos mais recentes levados a efeito na Alemanha, consideram justificado que, na última fase da sua vida, a pessoa possa, tendo em conta as circunstâncias, recorrer ao suicídio. Creio que a direção da Igreja tem simplesmente adiado a resposta ao problema, em termos de reflexão e decisão. Ao mesmo tempo, estou convencido, firmemente convencido, de que a vida é uma graça de Deus. A vida foi-me dada, não a adquiri por mim próprio. Como crente que sou, acredito que foi um dom que Deus me fez através dos meus pais, mas isso quer dizer que esse dom da graça de Deus significa, para mim, também responsabilidade. E o catecismo di-lo, sem dúvida, igualmente.
Todos temos uma responsabilidade em relação à nossa vida. Porque deveria esta responsabilidade cessar na sua última fase? Para mim, continua a estar presente nesse momento, continuo a poder assumi-la também nessa fase da vida. Em ligação com isto, deve dizer-se ainda o seguinte: se eu fosse um homem de quarenta anos, com família, mulher e filhos, e se sofresse um insucesso -- como, por exemplo, um fracasso rotundo na minha vida profissional --, não poderia então, despedir-me, pura e simplesmente da vida, sem me preocupar com os que ficassem. A nós, foi-nos concedido – e creio que a Igreja Católica o deveria considerar com clareza – um novo período de vida. Eu não me encontraria neste estado de saúde se não dispusesse de higiene, da medicina e de tudo o resto de que felizmente podemos dispor na atualidade. (pp. 28- 29)
Nesta época Hans Küng estava perante um avanço incapacitante da doença de Parkinson. Superada essa crise e passados uns anos acrescentou:
“Nada mudou no que se refere à atualidade e a urgência da minha posição central: cada indivíduo é responsável perante Deus e perante os seres humanos e tem igualmente o direito de decidir por si póprio da sua vida e da sua passagem para a morte. Esta autodeterminação parece-me bem fundamentada de um ponto de vista teológico e é necessária de um ponto de vista ético. Nos termos da minha convicção, quero assim, como declarei no prólogo, «contribuir para um processo de debate continuado através da voz de um teólogo cristão que se viu, ele próprio, existencialmente afetado pela problemática aqui tratada». Após a experiência vivida da crise, a minha atitude existencial é mais forte do que nunca e a minha convicção permanece inalterada. (p.136)
A eutanásia vai estar dentro de pouco tempo em discussão entre nós. A nossa participação na discussão é um ato de cidadania de que não podemos ausentar-nos. O tema é controverso, mas não é a estratégia da avestruz ou a omissão que ajuda a enfrentá-lo.
NOTA: Se ouvirem dizer que não é possível ter saudades de certos livros, não acreditem. Nunca me arrependi de os ter oferecido, mas sempre que o nome de Hans Küng surge, sinto nostalgia por já não ter estas duas obras. O mais grave: sei que não as voltaria a ler, como não reli nenhuma das outras. Não sei se é irracionalidade se um exacerbado sentido de posse. De livros – entenda-se …
Mário Pissarra