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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

RESPIGOS 5

08.08.16 | asal

ANOS DA MOCIDADE DO DOUTOR FREIRE (CONTINUAÇÃO)

(Com os RESPIGOS 5, concluimos a exposição que o Dias da Costa publicou na Humanitas, dos Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra, numa homenagem ao seu Professor Doutor. Quisemos com esta publicação reforçar a ideia de que a educação dos nossos seminários se identificava com as melhores práticas do tempo, permitia uma ambiência de fraternidade e alegria entre os alunos, sendo por isso, certamente, que muitos de nós gostamos de relembrar esses tempos. AH)

 

12. Secretário do Bispo

E, ainda como seminarista, o Freire foi nomeado secretário do senhor bispo D. António Ferreira Gomes. Datando

jgfreire.gifdesse tempo, não me furto a relatar a história que então lhe ouvi.

Tinha o D. António programada uma viagem. Para esse efeito, dá uma ordem ao seu motorista particular, que envergava indumentária própria, a tender para o escuro, aparentava os seus quarenta anos, exibia um bem fornido, penteado cabelo preto, e tinha estatura mediana.

À hora aprazada, o automóvel a acercar-se do paço episcopal; o prelado a chegar. É-lhe a porta do veículo franqueada. Instala-se. Entra também o seu secretário. Por fim, o motorista, já no seu lugar, aguarda. Decerto, espera a voz que lhe indique o destino da viagem... Mas em vão. A voz episcopal veio clara e curta, sem nome de local:

- Marche em frente!

Motor em movimento. O automóvel avança... Mas até aonde? Mais adiante, chegado o cruzamento, a bifurcação advinha, e, a tornar-se necessário a tomada de nova decisão ao volante, outra vez, o antístite:

— Volte à direita!

O carro desliza. O motorista continua a carecer, a todo o momento, de uma indicação toponímica esclarecente. Expectativa baldada. Surge, antes, um som, como o dos comandos, nas paradas militares:

— Sempre em frente!

Ε assim se seguiu, com sempre e só, a cada momento do aflorar de alternativas, - o sobrevoo sonoro, alertante: "direita", "esquerda", "em frente", "esquerda", "direita", "em frente". Nada mais.

Ε quanto ali se ansiou por um nome, um simples e pequeno nome de terra, lugar que fosse, mas um nome que chegasse e bastasse! Mas não: tal não aconteceu.

Que suspensão esta a dos acompanhantes de tal missão prelatícia! A atenção sempre desperta e alertada, mas nada logrando...

"Aonde vamos?" — foi a pergunta que nunca foi feita, mas que andou, durante toda a viagem, sempre por ali vagando, — subentendida, adivinhada, esperançosa, angustiada, desesperada —nos interiores daquele carro, por onde dançou, bailou, cabritou, revoluteou-passageira clandestina daquela excursão esquipática, excepcional, memorável.

Entretanto, a viagem, graças a Deus, tinha chegado a seu termo: estavam nas abas que levavam a Marvão... Tinham começado já a subida.

E, foi ali que, enfim, já então e só então, os espíritos, até aqui suspensos — puderam, no momento, alijar a sua carga de suspensão e até de suspeição, e, finalmente, quedar-se em sossego: iam para abrir um Seminário! O Senhor Manuel Vivas tudo explicava e anotava as episcopais recomendações.

 

13. Redactor do Jornal

Chefiou o Freire, depois, a redacção do jornal O Distrito de Portalegre.

O cheiro da tinta, a mancha da tinta e dos óleos que servem as máquinas, o baralho dessas mesmas, na hora da impressão, o aberto convívio com os tipógrafos — também foi esse, de certo, um ambiente familiar e uma parte da ocupação dos tempos do Freire. Quatro anos a iniciar-se em tudo!

Essa experiência de jornalista não o deixou, seguramente, de marcar: a facilidade e a celeridade da notícia, a acuidade e a pertinácia da observação expedita e directa, — exorcizando toda a espécie de adiamento ou retardamento, o enérgico aproveitamento do justo momento — tudo isso é um pouco da bagagem de quem tem a ocupação e a preocupação de escrever nos jornais.

Ε são esses mesmos predicados que, por vezes, vêm a faltar àqueles que guardam os seus escritos, na gaveta, para, de remanso, no decorrer dos tempos, os ir tratando, tal como a ursa faz às suas crias, "lambendo-os", na expressão de Horácio.

Escreveu-me, o Freire, por essa altura, uma carta, propondo-me que lhe enviasse um meu poema extenso "A Pedra do Altar do Crato", para poder ir publicando uma parte, semanalmente, no seu jornal.

Não lhe respondi, não sei porquê, e disso me penitencio, porque o poema ainda está por publicar—e fora muito apreciado no dia da cardinalícia colocação daquela auspicalis lápis.

 

 14. Ε não foi bispo

Lembrei, um dia, ao Freire a existência de uma velha e consabida asserção latina que nós por lá ouvíamos, nos longos e lentos tempos de convívio clerical: "Qui episcopatum desiderat, bonum opus desiderat"; e rematei perguntando-lhe "Porque não?"

Recapitulando os factos da memória, num rebuscar dos seus arquivos mentais, sem hesitar, foi ele satisfazer a minha curiosidade, segredando-me:

"—Não quis aproveitar a ocasião favorável..." ("L 'occasion est chauve" — lembrei-me eu do adágio francês).

Ε ainda me quis confidenciar como o Bispo de Portalegre, senhor D. Agostinho de Moura, lhe tinha feito uma proposta para Bispo Auxiliar, e como, tendo o Freire deixado passar um tempo, o prelado desistiu de triplicar o convite.

Resolveu o problema de outro modo.

Nesse comenos, pensei eu, quem ficou a ganhar foi a Universidade de Coimbra, onde já era doutor e Professor Auxiliar.

 

ANTÓNIO JOSÉ DIAS DA COSTA

 In HVMANITAS - Vol. L (1998) (Revista de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra)