OUTRO DOCUMENTO ÍMPAR
Caro António Henriques
Aí vai um documento. Farás dele o que entenderes. Por mim, tudo bem.
Um abraço
A. Pires da Costa
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VOLTEI A MARVÃO Leitão e Pires da Costa: há + de 40 anos que não se viam
Li tudo e vi tudo. Quer a fazer uma coisa quer outra, deliciei-me. Acompanhar no « Animus Semper » todos os relatos e depoimentos dos condiscípulos que conviveram no encontro de Marvão, no dia 20 de Maio, foi como se voltássemos a viver de novo, poucos dias depois, o maravilhoso convívio que partilhámos na nobre vila alentejana.
Dir-se-ia que, naquele dia primaveril, como que por magia ou milagre, todos os bilhetes de identidade se nivelaram no ano do nascimento: Fins do século XX!...
Relatos brilhantes, revelações emotivas de todos os matizes, olhares curiosos perspectivando a descoberta de condiscípulos de todas as eras, rostos sorridentes, exclamações variadas mas quase uniformes: Tu? Um abraço, pá! Há tanto tempo! Mas estás cada vez mais jovem! Estás não, estamos!
E, para que tudo ficasse completo, eis que nos foi oferecido o discurso, desejado por todos, do Chico Cristóvão, brilhante no conteúdo e na forma. Foi a reluzente cereja que, lá no cimo, coroou o bolo fabricado por um qualificado grupo de obreiros…
Por tudo o que ficou narrado, surgiu-me na mente uma decisão inabalável: nada a acrescentar, quietinho, que assim é que estás bem!
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Porém, eis que há dias, meditando sobre tudo o que acima narrei, me surgiu a matraquear o pensamento, uma voz que falou assim:
E tu, Marvão, sereno lá nas alturas,
Diz-me, no vinte de Maio que passou,
Que recebeste? Alegrias ou agruras,
Do grupo de «jovens» que te visitou?
Tal emaranhado de palavras obrigou-me a um meditar envolto em curiosidade e que me conduziu ao seguinte raciocínio:
- Se já tanta gente deu a sua opinião, porque não tentar saber a do nosso amigo Marvão? Não sendo inédito, no mínimo, poderia ser curioso.
Convicto do interesse que tal facto teria para todos nós, agucei a curiosidade e, num repente, tomei a decisão de levar por diante aquilo que seria a única forma de conseguir tal objectivo: voltar a Marvão e ter uma conversa com ele, assim a modos de entrevista disfarçada, para obviar a que ele recusasse falar com a abertura que eu desejava.
E lá fui eu a caminho da nobre vila alentejana.
Chegado à porta principal, que estava aberta, perguntei:
- Posso entrar? Eis a resposta obtive:
- Claro que podes, não só porque a porta está aberta, mas também porque já te conheço.
Admirado com a segunda parte da resposta, retorqui:
-Não me digas que te lembras mim, passado que foi um mês do último dia em que aqui estive.
- Outro a dar-lhe! – disse em surdina, como se não quisesse que eu ouvisse. E continuou: - Vocês, os homens, têm a presunção de que sabem tudo e apregoam que são seres superiores e que os outros são brutos e sem inteligência. Estão enganados, eu também tenho alma e sentidos: vejo, ouço, cheiro, sinto e, como vês, também falo.
- Desculpa, mas falta-te um sentido, o paladar. Se estou errado, corrige-me.
- Mais uma vez, a tua ignorância! Não tenho paladar porque não preciso, o meu alimento é o espírito que, duma forma que tu não compreenderás, me sacia o suficiente para que viva todos os anos que já conto e os outros que hão-de vir. Todos os seres da natureza têm alma, mas os homens têm dificuldade em compreender isso. Vocês não são todos iguais, quanto mais os outros seres que a natureza tem. Quis dar-te estas informações para que fiques à vontade, para falares do que quiseres. Abre-te sem preconceitos, que eu farei o mesmo. E cá estou para te ajudar.
- Agradeço-te muito e vamos então ao fundamental que me trouxe aqui.
- Diz-me, Marvão amigo – deixa-me tratar assim – como viveste e acompanhaste a reunião dos antigos seminaristas da diocese de Portalegre e C. Branco que tivemos o prazer de realizar no teu território.
-Antes de mais, agradeço-vos por me terem escolhido para o evento. Quanto à tua pergunta, tenho a dizer-te que foi tudo maravilhoso. Já há muito tempo que não recebia tanta juventude como naquele dia. Nos vossos corpos poderíamos notar algumas diferenças, mas os vossos espíritos comportaram-se, durante todo o dia, como jovens. Diria até que, em certos momentos, como adolescentes em dia festivo. Posso adiantar-te que, com as minhas capacidades naturais - só ao vosso alcance através dos meios tecnológicos que têm descoberto ao longo de muitos séculos - posso observar tudo o que se passa no meu território, sem necessitar de me deslocar. Aprecia.
Vi a chegada de todos vós. Apercebi-me da ansiedade do Mendeiro que via o tempo a passar sem que o programa se iniciasse. Na sessão de boas-vindas, apreciei, como vós, as palavras do F. Cristóvão, a sua originalidade bem como o seu sentido de humor que a todos deliciou, qual toque premonitório de como seria o resto do dia. A missa, onde recordei os maravilhosos cânticos que me lembraram os tempos em que aqui permaneceu o Seminário. A animação do almoço, onde se tinha a sensação de a comida era relegada para segundo plano, imperando acima de tudo o convívio e conversas para recordar.
- E os antigos alunos do Seminário, conseguiste reconhecê-los?
-Todos, um por um e pelos nomes. Podia lá esquecer esses extraordinários tempos da minha vida! Revivê-los foi para mim muito gratificante. E, para ajudar, a vossa postura, a vossa alegria, a vossa relação tão saudável, a vossa comunicação fácil! Podes crer que eu próprio, que já conto alguns séculos de vida, me senti mais leve e sorridente – sem que algum de vós se apercebesse disso – do que é meu hábito nestas ocasiões. Se não sabes, ficas a saber que no estatuto deontológico da nossa postura ancestral impera o princípio da austeridade e da discrição, para que possamos receber a amizade e o respeito dos que nos visitam. É uma questão de princípio e, como vocês, homens, costumam dizer, temos também de fazer pela vida…
- Confesso a minha surpresa, tu, afinal, conheces melhor os homens do que eles te conhecem a ti.
- Se já compreendeste isso, é sinal de que estás a evoluir.
Quantos anos foste seminarista?
- Apenas quatro. Mas, podes crer, a marca ficou-me para toda a vida. E sinto muito orgulho nisso.
- Está bem, mas se tivesses frequentado o seminário aqui em Marvão, a tua bagagem cultural seria outra e notar-se-ia logo. Mas, como se diz entre vós, nem todos podem ser doutores. Conforma-te, pois isso não impede que sejas um bom cidadão.
A ignorância não colide com a cidadania. O cuidado a ter é que « não vá o sapateiro além do chinelo ». Se assim fizeres, não terás problemas. Contudo, sempre te quero dizer que o melhor tempo que aqui tivemos foi o do seminário. Deliciei-me e aprendi muito. Era a teologia, era a filosofia, era o latim, era o grego, enfim, um caudal de conhecimentos como aqui nunca se vira.
- Imagino. E quero dizer-te que gostei muito deste teu depoimento, o que agradeço sinceramente a tua sinceridade.
A noite aproximava-se e comecei a notar algum cansaço no meu interlocutor. Senti que deveria sugerir o fim da nossa interessante conversa. Aceitou a ideia, enquanto me confessava que era seu hábito recolher-se logo que o lusco-fusco se aproximava.
- Mas ainda quero dizer-te mais umas palavrinhas, porque as tenho como justas e devidas, acrescentou.
- Fala à vontade. Diz lá o que pretendes.
E, numa postura mais austera, dir-se-ia quase solene, disse.
-Quero aqui registar, com grande prazer, a comparência do nosso Bispo, D. Antonino Dias, que, com uma dignidade de louvar, permaneceu entre os convivas desde o início do programa até ao fim. Esta sua postura calou fundo no coração de todos os presentes, naturalmente possuídos de um sentimento de gratidão.
De realçar ainda as comparências, também a tempo inteiro, do meu presidente da Câmara Municipal, bem como da minha presidente da Junta de Freguesia. Incansáveis no seu apoio à organização da festividade, foram também dignos do melhor apreço. Pelos mesmos motivos, felicito também o Presidente da Junta de Freguesia de S, Salvador da Aramenha, pois, daqui vi bem, todos os cuidados que teve para vos proporcionar uma estadia interessante, quer na visita à cidade de Ammaia, quer pelo óptimo lanche convívio com que terminou a vossa festividade.
Após este depoimento, despedi-me. No entanto, ainda lhe ouvi um apelo emotivo:
-Adeus! Mas peço-te um favor: Quando encontrares colegas teus que em Maio me visitaram, dá-lhes abraço recomendado por mim.
- Assim farei, já que um pedido teu é uma ordem, tal foi o prazer que tive em falar contigo. Até qualquer dia!
Um sentimentalão, este nosso Marvão!
Reconfortado, regressei a casa com o sentimento de que acabara de cumprir um dever. Daí o contentamento que me animava, qual criança que acabara de conseguir pronunciar pela primeira vez uma palavra de difícil dicção.
Uma coisa é certa: o encontro do dia 20 de Maio jamais se apagará das nossas memórias… « Ad perpetuam ».
A. Valentim Pires da Costa
Junho de 2017