MARVÃO - UM RICO TESTEMUNHO
Chegou finalmente ao nosso blogue esta pérola do Chico Cristóvão, o testemunho que fez vibrar os convivas que estiveram em Marvão e agora se publica. Cabe-nos agradecer a mais este ilustre escriba a vivência que ele quis compartilhar connosco, a razão principal por que existe este ANIMUS SEMPER. Um dia destes o Chico ainda vai falar da orquestra "Vintóitma" e de outras iniciativas que alegravam os nossos dias em Portalegre.
Obrigado, amigo! AH
MARVÃO
O Seminário Maior esteve em Marvão desde 1949 até 1955. Durante esta meia dúzia de anos, passaram por aqui noventa e oito seminaristas, dos quais sessenta e três foram ordenados padres.
Frequentei-o durante os três últimos anos da sua existência e foi, de todos os seminários em que estudei, aquele que melhores recordações me deixou, quer pela alta espiritualidade e qualidade do ensino quer pelo encanto desta vila carregada de História, com amplos e belos horizontes, ambiente calmo e amabilidade dos habitantes. Os moradores de Marvão sempre nos manifestaram uma grande amizade, proporcionando-nos uma convivência familiar e participando na nossa vida comunitária.
Foi em Marvão que vi, pela primeira vez, colegas meus na fronteira do sacerdócio a prepararem-se seriamente para esta missão. Os estudos eram mais específicos, as conversas tratavam constantemente das tarefas próprias da vida sacerdotal e as preocupações dirigiam-se para o ministério que se aproximava. Vivia-se uma piedade centrada na vida litúrgica, com o expoente máximo na missa solene de domingo, cuja vivência, dignidade e beleza de cerimonial tanto sensibilizavam o povo de Marvão. Corria de boca em boca pelas povoações vizinhas que no Seminário havia a “missa dos segredos”, nome do gesto do “ósculo da paz”, aqui avivado pelo porte da veste eclesiástica e litúrgica, pelo canto, luzes, flores, incenso e dignidade das cerimónias sagradas.
Dentro deste ambiente de religiosidade autêntica, estudo árduo, disciplina austera mas humana, vivência comunitária, testemunho de colegas e professores, eu era impelido para o ideal sacerdotal, apesar de sentir os meus limites e dúvidas. A liberdade de estudo da vocação e a ajuda dos meus superiores acabaram por me proporcionar a possibilidade de ir esclarecendo os problemas vocacionais, o que me levou a concluir que teria de enveredar por outro caminho diferente do sacerdócio.
Na nossa gíria estudantil, chamávamos ao Seminário de Marvão a “Universidade do Calhau”. Na verdade, os estudos aqui feitos tinham nível superior comparável ao das Universidades, só que não conferiam títulos académicos.
Entre as histórias ou partidas humorísticas, pode referir-se “O Enterro do Compêndio de Filosofia”, feito a altas horas da noite, na Igreja de Santa Maria que servia de dormitório, na única vez em que só nós estávamos no Seminário, livres de qualquer professor. O autor do compêndio chamava-se Reinstadler e tinha sido substituído por outros autores mais recentes. Resolvemos fazer-lhe, portanto, o enterro. Levou-se o livro em cima de um andor velho. Enquanto se ia no cortejo, cantava-se um hino em honra do autor defunto:
“ O coitate Reinstadler
Vita tua sicut fummus
Volebas esse magistrum
Et non passabas de alumnus!
Coro:
O Reinstadler é um grande ponto…”
Durante o enterro, havia momentos para chorar. Foi tal o choro que uma voz, temendo que o barulho acordasse os vizinhos, disse: “Debetis flere piane!”. Houve também discurso de elogio fúnebre.
Outro espectáculo foi o dos doutoramentos. Um aluno que tinha sido reprovado na mesma disciplina várias vezes lá passou por fim. Foi por isso doutorado com toda a solenidade, com uma manta a servir de veste académica. Fez-se o elogio do novo doutor com veemente discurso e entrega de um canudo de papelão. Noutro doutoramento, o novo doutor apresentou um hino novo parodiando cenas e lugares de Marvão. Começava assim:
“Ai, Marvão, das muralhas
Das antiqualhas, das navalhas
Ai, Marvão, das ventanias
Das manias, das doutorias!…”
É claro que não faltou a entrega do canudo com a devida solenidade e dizendo-se as palavras rituais: “Faveas Accipere Canutum!...”
Pelo ambiente que aqui vivi, as amizades que fiz, a liberdade de que gozei, a afabilidade dos habitantes, a beleza da terra com os seus ares puros e vistas alargadas, as gratas recordações que guardo, a emoção com que sempre retorno, posso dizer-vos que Marvão foi o meu primeiro grande amor.
Francisco Cristóvão