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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

Leituras de férias - 6

12.09.17 | asal

Cristianismo e ecologia

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     Sempre lidei mal com a acusação feita ao cristianismo por alguns ecologistas. A acusação resulta do facto de o homem ser descrito no Génesis como o coroar da criação. Isso – dizem - levou o homem a conceber-se como dono e senhor das restantes criaturas. E aqui radicam os sonhos de domínio. Era frequente contrapor o exemplo e o pensamento de S. Francisco de Assis: um hino à fraternidade universal. Contra-argumentava-se, então, que o cristianismo em muitos aspectos era uma das fontes inspiradoras do próprio pensamento e preocupações ecológicas. Recorria-se, por vezes, mesmo a textos bíblicos. Como é normal nestes casos e é bom não esquecer o exemplo de Galileu,  é fácil encontrar excertos bíblicos que servem na perfeição a cada uma das partes da discussão. É verdade que a Igreja-instituição foi cega e prepotente em relação à ciência nascente e à sua nova metodologia, mas não é menos verdade que Galileu fez recurso a argumentos bíblicos para defender a sua posição. A defesa que os dois livros (a Bíblia e a Natureza) têm o mesmo autor e, por consequência, não se podem contradizer, não é um argumento científico.

     Sempre considerei que esta acusação se devia a uma atrevida ignorância. Bastaria ter um conhecimento elementar do pensamento da patrística sobre a propriedade privada e os seus limites para perceber que o núcleo do pensamento cristão estava na aceitação do uso e na condenação do abuso. [Faço um parêntesis para chamar a atenção que agora, também por ignorância, se costuma traduzir os Padres da Igreja pelos Pais da Igreja!] A relação com a Natureza foi sempre a do uso para o serviço do homem e não a do domínio ou posse absoluta [isso é abuso].

    Foi a Filosofia Moderna que pensou o homem como Senhor da Natureza. Bacon considerava que o homem é o ministro da Natureza. Se acrescentarmos que para a modernidade nascente o saber é poder; se conseguirmos descortinar as leis da Natureza, com a remoção do véu da ignorância, é-nos dado o instrumento para a poder dominar. A Natureza, outrora habitada por inúmeras forças ignotas e indomáveis, passa a poder ser dominada através do conhecimento das suas leis. Está aqui uma das raízes para o «desencantamento do mundo», o desaparecimento do medo e a dispensa de Deus. Se a ciência ainda não explica tudo e não dominamos tudo é porque ainda não descobrimos todas as leis. Mas isso é uma questão de tempo. Começam aqui a surgir as teorias filosóficas do "Homem Deus" como a defendida pelo último livro que me chegou às mãos (Yuval Noah Harari (2017). Homem Deus. História breve do Amanhã, Lisboa, Temas e Debates)

     O ataque mais cerrado e filosoficamente significativo a este sonho de domínio foi feito por Martin Heidegger. Ataca a ideia de reduzir a Natureza a um stock energético disponível para ser explorado e o conceito de ciência que lhe está associado: a teoria do real. Só que o real foi reduzido ao calculável. Esta visão quebra a solidariedade com as gerações vindouras.

   Mas felizmente temos hoje um papa ambientalista e preocupado com a ecologia. Exige mesmo uma ecologia humana, pois urge cuidar das pessoas. É claro que o pensamento actual da Igreja não satisfaz a ecologia profunda (deep ecology) nos seus radicalismos ou os defensores das éticas biocêntricas e cosmocêntricas. Todavia, afirma categoricamente - o que em meu entender, sempre foi - o pensamento genuíno do cristianismo. Deixo-lhes um extrato do texto papal.

 

Guardiões da Natureza

 

“Por um lado, a natureza está à nossa disposição, podemos usufruí-la, fazendo bom uso dela; por outro, não somos os seus donos. Somos guardiões, mas não donos.

     Devemos amá-la e respeitá-la; por isso, embora muitas vezes sejamos guiados pela soberba do domínio, da posse, da manipulação, da exploração, não a «guardamos», não a respeitamos, não a consideramos um dom gratuito do qual devemos cuidar.

     Respeitar o ambiente significa, porém, não só limitar-se a evitar usá-lo mal, mas também utilizá-lo em vista do bem.

    Penso sobretudo no sector agrícola, chamado a dar sustento e nutrição ao homem. Não se pode tolerar que milhões de pessoas do mundo morram de fome, enquanto toneladas de géneros alimentares são descartadas diariamente das nossas mesas.

    Além disso, respeitar a natureza recorda-nos que o próprio homem constitui uma parte fundamental da mesma. A par de uma ecologia ambiental, também é necessário uma ecologia humana, feita de respeito pela pessoa.”

Papa Francisco, Discurso no Parlamento Europeu, 25 de Novembro de 2014.

 

 

Abrantes, 12.09.2017

Mário Pissarra

NOTA: Mais um texto para pensar, para esclarecer, para nos actualizarmos. Obrigado, Mário, em nome de todos.