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Animus Semper

Associação dos Antigos Alunos dos Seminários da Diocese de Portalegre e Castelo Branco

Leituras de férias - 4

24.07.17 | asal

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MAIS UM LIVRO EM ANÁLISE

 

Isto está cada vez melhor! As colaborações aumentam e a nossa obra comum melhora. Aqui se apresenta mais um livro digno de leitura. E o registo escrito pelo Mário Pissarra é mesmo agradável. Pessoalmente, fiquei mais rico e com vontade de ler este livro. AH

 

Quando tropecei com os olhos neste livro ficou decidido que o iria ler. O José Milhazes é considerado por muitos meu sósia desde que começou a aparecer na televisão. Ele é meu sósia, mas eu nada fiz para isso. As incertezas da partida são partilhadas por ambos, mas a certeza da chegada está garantida e documentada: cheguei 10 anos antes. Muitos me disseram que havia um correspondente na URSS que era muito parecido comigo. Fui ver e confirmei o facto. Há tempos, a minha filha andava com os meus netos a visitar a Batalha e os meus netos chamaram os pais para verem um sr. parecido com o avô. Além disso, abri o livro na primeira página e encontro a descrição da sua partida em 1977 para a URSS: «Eu carregava, não, deixemo-nos de exageros, transportava na mão uma mala de cartão acastanhada com um par de botas de couro, algumas peças de roupa e dois livros. (…) A mala era leve porque, além de não haver dinheiro para mais, eu estava convencido de que não se ia para o «Paraíso Terrestre» com a casa àJosé Milhazes.jpgs costas, porque nesse lugar não costuma faltar nada, à excepção do pecado. Sim, eu ia viver na sociedade quase perfeita, na transição do socialismo desenvolvido para o comunismo.» Se o mote político para o que se ia seguir estava dito, o remate da página garantia um leitor certo: «Acreditava tanto nisso como, dois anos antes, não tivera dúvidas quanto à existência de Deus, quando frequentava o Seminário da Ordem dos Combonianos, na Maia». De Deus não se fala mais ao longo do livro, mas de um ponto de vista político, o livro pode ser lido como o desfazer de uma ilusão e a hecatombe de um regime com final trágico.

                Reconheço que esta referência aos combonianos também teve algum peso. Quando estudei teologia no Porto, tinha dois colegas desta ordem e tive conhecimento dos problemas políticos que alguns dos seus missionários viveram por causa da Guerra Colonial. A sua referência a estes factos confirma as informações que já tinha. No capitulo 2, conta a sua ida para o seminário (importância de um Pe. Jovem que apareceu nas Caxinas e a passagem pelos escuteiros). O seu testemunho sobre a importância do seminário na sua formação é rico e elogioso. A título de exemplo: «Enganam-se os que consideram que no seminário tínhamos uma vida monótona; bem pelo contrário, havia tempo para tudo. A maior parte do tempo era ocupada pelos estudos e orações, mas também havia lugar para o desporto, especialmente para o futebol», ou «seria injusto não sublinhar o alto nível de ensino na Ordem dos Combonianos, não só académico, mas também cívico». Não faltam histórias sobre peripécias e partidas que só quem passou pelo seminário sabe apreciar devidamente. As referências aos padres quer do seminário quer depois no liceu revelam estima e consideração. Foi também o seminário e o «contacto com membros de círculos católicos antifascistas do Porto [que] contribuíram para despertar em mim o interesse pela política.»

                Ao longo do livro, o autor, numa escrita simples e despretensiosa, partilha as suas experiências vividas num mundo fechado como era a URSS e, estas histórias e vivências devidamente contextualizadas historicamente, mostrando a corrupção, a hipocrisia, os jogos de poder, a vida dos estudantes estrangeiros, mas também a solidariedade entre as pessoas e o seu sentido de humor. Aliás, ao longo do livro, são contadas várias anedotas dos russos acerca do regime. Um exemplo:

Um militante comunista é chamado à direcção regional do Partido por ter sido acusado de «desvio de direita».

-- Alguma vez se desviou da linha política do Partido? – perguntou um dos chefes.

-- Não, desviei-me sempre juntamente com a linha do Partido.

                Quem não se vê bem na fotografia ao longo do livro é o PCP e os seus militantes. Mas, dramático é assistir ao desmoronamento das estruturas de suporte do grande império soviético. Os nacionalismos a renascer e o seu desejo de independência, a violência étnica que a deslocação de populações provocou, o não pagamento de salários, os oportunismos mais diversos, etc. O caos atinge níveis tais que as crianças na escola primária, quando questionadas  sobre o que queriam ser quando fossem grandes, respondiam em grande número: as meninas desejavam a profissão em que as mulheres têm pernas até ao pescoço e os meninos desejavam ser bandidos. Foi esta desordem associada à perestroica, tão apreciada pelos ocidentais e não menos detestada pelos cidadãos soviéticos, em que o Estado deixou de funcionar e ser minimamente eficiente, que explica o surgimento e a aceitação de Putin. Este, num registo autoritário, é certo, colocou o Estado a responder às suas funções e permitiu a recuperação do orgulho Russo.

                É também interessante e elucidativo o capítulo que o autor dedica à Alexandra, a criança que o tribunal de Braga entregou à mãe e que depois os «pais adoptivos» tentaram trazer para Portugal. Uma leitura ligeira, interessante e enriquecedora. Se for lido à lareira acompanhado com um copo de vodka, as inúmeras referências à gastronomia soviética ganham novos sabores.

Boa leitura!

Mário Pissarra